segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Um debate sobre o beijo gay e a estratégia da visibilidade

Um debate sobre o beijo gay e a estratégia da visibilidade
                
Virginia Guitzel e Eduardo Goes

Beijo de Félix e Nico, personagens de Amor à Vida.
      Na última sexta-feira, reprisado no sábado, pela primeira vez a emissora Rede Globo exibiu, e em horário nobre, um beijo homoafetivo entre dois homens. A esquerda, os movimentos de direitos humanos e LGBTTIs e muitos LGBTTIs comemoram-no como uma vitória. Para entrarmos nesse debate é fundamental expressar que Félix e Nico, personagens da telenovela Amor à Vida, representados, respectivamente, por Mateus Solano e Thiago Fragoso, são a expressão de um romance que conserva os valores burgueses: o casamento, a constituição de uma família monogâmica e a propriedade. A televisão, como uma das ferramentas de massas fundamentais para a dominação da burguesia, só pode transmitir seus valores e, nesse sentido, garantir a perpetuação da ideologia das classes dominantes. Assim, tal beijo é uma declaração aberta de que na democracia dos ricos, sob o capitalismo, a burguesia nacional pode conviver com parte, grifo proposital, dos LGBTTIs, incluindo o nicho de mercado que trazem consigo (o que chamamos de Pink Money).
Manifestantes em ato exigindo justiça por Kaique Augusto.
      Muitos homossexuais assistiram ao último capítulo da novela emocionados, o que não poderia ser diferente diante de tamanha homofobia existente em nosso país. O Brasil é reconhecido como o país mais homofóbico do mundo (superando países que têm legislação específica para criminalização da homossexualidade, alguns com pena de morte aos homossexuais), e aqui, aos 18 dias de 2014, já somavam-se mais de 23 LGBTTIs assassinados. A morte de Kaique Augusto, no dia 11 de janeiro, segue impune e silenciada pelo malabarismo organizado pelas polícias e seus comparsas, que forjaram um suicídio, o qual segue sem explicações elementares. Os pactos do governo do PT com a bancada evangélica e a histórica relação amorosa desse partido com o Vaticano foram os responsáveis pela tentativa de retomar a “cura gay”, extinta a mais de 23 anos, desde que a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a homossexualidade (antes com o sufixo -ismo) da classificação internacional de doenças. Nesse contexto, como poderiam os homossexuais, estando acostumados a sua inexistência política ou a não serem representados nos programas de massa e nos debates abertos nos mais diversos âmbitos da sociedade, não se emocionarem?
      No entanto, ao compreendermos que os LGBTTIs sintam-se representados ao verem um beijo gay – afinal, sempre foi cena proibida e isso é parte de reconhecermos a homofobia vigente –, precisamos abrir um debate profundo não sobre o beijo em si e todas as polêmicas que vêm se desenvolvendo, que acabam caindo em ataques, calúnias e questões mínimas que nada contribuem para os revolucionários e os setores oprimidos avançarem na conquista de suas demandas. É preciso debater os limites da visibilidade (LGBTTI, que impulsiona a ordem dessa sigla inclusive) como estratégia do movimento LGBTTI em particular, mas dos movimentos de setores oprimidos em geral.

O papel da luta por visibilidade e os limites dessa estratégia

      A influência do pensamento pós-moderno como orientador da organização LGBTTI, hoje, é marco fundamental do retrocesso da reflexão estratégica na luta pela livre expressão das sexualidades e construção de gênero. O momento em que foi elaborada – em meio à restauração capitalista nos países do leste Europeu e ex-URSS, com a profunda vitória subjetiva disseminada por muitos ideólogos burgueses como “fim da história” e “vitória do capitalismo”, bases que solidificaram as democracias burguesas dos países imperialistas que conquistavam o “bem estar social” como as máximas do desenvolvimento humano – diz muito sobre essa linha do pensamento. Linha muito refletida em Focault e atualmente centrada em Judith Butler (uma das principais referências das transfeministas e do conjunto do movimento Queer), teóricos que, ainda que ofereçam avanços no pensamento subjetivo sobre a sexualidade, demonstrando-as a partir de desconstrui-las em formas da construção social – desnaturalizando a heterossexualidade como algo divino ou biológico – contrapondo-se ao determinismo biológico (que determina o gênero e a sexualidade a partir do nascimento) e concluindo pela total desconstrução de perfis eternos de sexualidade e de identidade de gênero (sempre um, em contraposição ao outro, isso é, constrói-se a partir da exclusão do outro), esbarram no limite – não tão menor, ou desconsiderável – de como criar condições para que todas essas potencialidades corretamente apontadas possam ser realmente exercidas pelos indivíduos.
      Ao abandonarem as contribuições de Marx e Engels, e de todo o legado marxista também produzido por Lenin, Trotski e Rosa Luxemburgo, tais autores que abertamente retomam Hegel e outros idealistas avançam na concepção de que o “discurso tem poder por si”, de que a “fala constrói” e, a partir disso, se propõem a constituir uma contracultura paralela e pacífica com os marcos do sistema capitalista. Ignorando que, acima do discurso utilizado, existem bases sólidas e materiais que determinam a realidade de nossa sociedade dividida em classes.
      Muitos dizem que “antes de lutar por nossos direitos, é preciso existir”. Em última instância, estamos de acordo que os mortos não podem lutar, nem mesmo por suas vida – porque já não as possuem. Mas é a visibilidade que nos faz “existir”? Enquanto o tal beijo era televisionado – com todos os limites claros de conservadorismo naquela cena –, enquanto o casal homoafetivo dava uns selinhos frouxos, Edith – outra personagem da novela – saía pela rua seminua com seu namorado/amante sem camisa, beijando-se e dançando sensualmente, insinuando cenas sexuais.
      É importante ver que essa estratégia da visibilidade, organizada pelos movimentos LGBTTIs e adotada por certa esquerda centrista muito influenciável que executa claramente a separação entre “movimento de oprimidos” e “movimento revolucionário”, reivindica o beijo gay como uma vitória ou conquista ensimesmada, colocando como ponto de partida a necessidade de sermos assimilados pelo sistema capitalista e a ideia de que os LGBTTIs seguem sem direitos e oprimidos por uma “ignorância” (quase que inocente) das população em entender esses valores. Tal estratégia acaba por ignorar variadas formas de dominação burguesa, e que a própria homofobia se aplica à divisão das fileiras operárias para facilmente superexplorá-las, e também que, aqueles que agora nos permitem sermos vistos, impõe-nos o papel ideológico de que não se pode decidir sobre nosso próprio corpo, nossos gostos, nossa sexualidade e nosso futuro.
Selinho do jogador Emerson Sheik, do Corinthians, em amigo.
      Parece-nos muito mais importante, nessa perspectiva, do que os selinhos emitidos pela Globo o papel do jogador Emerson quando abriu grande discussão, a partir de um dos lugares mais homofóbicos de nosso país, o futebol brasileiro, ao postar foto sua dando selinho em um amigo. Logo depois, teve de retroceder, é verdade. Mas o papel político sincero que aparecia naquele momento foi, sem dúvidas, muito mais de enfrentamento com a real opressão do que qualquer tentativa de cooptação como a que então propõe a rede Globo – o de sermos os gays aceitos pelo capitalismo.
      Não nos basta aparecer! Não queremos apenas sermos vistos, e pelos limites das lentes da reacionária classe dominante brasileira. Existimos e temos disposição à luta. As barreiras impostas aos LGBTTIs são muito mais altas e sólidas que as dos dramas familiares representados! Que faremos agora? É necessário de uma vez por todas, e, sim, aproveitando o espaço aberto pelo debate em torno do aclamado beijo, desde nossos locais de trabalho, entidades estudantis e sindicatos, superando o freio das burocracias, avançarmos na luta por direitos que esbarram nos muros do próprio capitalismo. A homofobia, o machismo e o racismo, e mesmo a luta de determinados setores em um suposto combate a essa formas de opressão, dividem-nos e nos enfraquecem. 
      Organizar os sindicatos e as entidades que a esquerda conquistou nos últimos anos para fazer um sério debate, no seio do movimento operário, sobre a necessidade de se colocar ombro a ombro nessa luta com os setores oprimidos está no horizonte dessa esquerda? Organizar comissões de investigação, independentes do Estado e de seu aparato jurídico comprometido com os interesses da burguesia nacional, no caso de agressões e assassinatos, fortalecendo junto a entidades estudantis, organizações de direitos humanos e sindicatos a única aliança revolucionária, entre oprimidos e trabalhadores, capaz de colocar em cheque todas as expressões da miséria imposta pelo capitalismo está no horizonte dos movimentos LGBTTIs? Podemos tomar a tarefa de utilizar o espaço aberto pelo "beijo gay" para discussões em todos os locais, demonstrando que somente os LGBTTIs ricos podem adotar, ter uma casa na praia, serem felizes e respeitados, segundo a Globo e os que ela representa? E quanto aos outros setores LGBTTIs? Nossa auto-organização, a superação da homofobia, de todas as opressões e do presente regime de exploração, podem ser conquistadas porque "agora fomos vistos"?
  
Por um Estado verdadeiramente laico! Pela separação efetiva da Igreja do Estado! Fim do acordo Brasil-Vaticano!

Pelo direito a nossos corpos, à livre construção e manifestação de nossas sexualidades e gênero!

Criminalização da homofobia já! Comissões independentes do Estado, compostas por familiares das vítimas de homolesbotransfobia e organizações de direitos humanos, entidades estudantis e operárias para investigação e debate sobre a punição dos agressores!


Que todas as entidades estudantis e sindicatos tomem para si a luta dos setores oprimidos! Pela união de nossas fileiras e real conquista de direitos!!! 


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