Juventude às Ruas!

Fim do massacre ao povo palestino! Fim dos ataques do Estado de Israel à Faixa de Gaza! Palestina LIVRE!!

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Levante Popular da Juventude: Fazendo, com cara “jovem”, o velho trabalho dos PTistas.


Por André Bof

Recentemente, o conhecido Levante Popular da Juventude realizaram um Encontro nacional, na cidade de Cotia, para organizar  setores de sua militância que o próprio movimento define como “do campo, da periferia, das universidades”.

Autointitulado um encontro de “milhares”, o encontro girou em torno de mil e poucos jovens de alguns estados que, após a reunião, organizaram um ato, na Avenida paulista, em SP, por uma demanda que, segundo o movimento toca “profundamente” as necessidades das periferias, universidades e do campo... : A Reforma Política! Aquela que Dilma anunciou (e tão logo esqueceu) como a salvação do País, quando ocorreram as manifestações de milhões de Junho de 2013.

É, no entanto, importante relembrar o que lhe rendeu a famigerada fama e quem é o “Levante Popular da Juventude”.
Formado há poucos anos, o Levante Popular da Juventude é uma espécie de braço juvenil de uma organização política, mais antiga, chamada Consulta Popular, surgida em 1997 e que se autodefine como impulsionada por movimentos sociais sobretudo o MST, dirigido pelo, também ligado a Consulta, João Pedro Stedile.

Além de uma série de afirmações abstratas como o “compromisso com a unidade popular”, seu projeto distingue-se pela repetição e reafirmação, seguida a risca pelo Levante Popular, da luta por um “Projeto Popular”, o qual, então, seria a concretização da dita “revolução brasileira”.
Chegam até a, surpreendentemente, afirmar que as tarefas estruturais do Brasil (que os marxistas definem como a Reforma Agrária, libertação da influência do imperialismo, industrialização, etc) só podem ser cumpridas pelo trabalhadores assalariados (proletariado) que, dirigindo todos os demais oprimidos, se coloca na Luta pelo poder.
Uma tese, sem dúvida, próxima a de muitos trotskystas e marxistas revolucionários que seguiram a estratégia que levou a vitória em 1917 na Rússia.  Postuladas as “conexões” do levante popular, voltaremos a isto a seguir.

Do ponto de vista das ações que os tornaram conhecidos, estão os já famosos “escrachos” grupo rastreava as casas e localização de ex-apoiadores e membros da ditadura Civil-Militar de 64 e então faziam pichações, atos, e coisas do tipo, perturbando e trazendo a tona tais milicos de casaca em ações que, não é problema nenhum afirmar, foram muitas vezes importantes para publicizar a questão da impunidade.

No entanto, é aqui então que, não por acaso, somos obrigados a voltar.

Além seu sumiço repentino durante as mobilizações que, em Junho, reacenderam  a luta em setores massivos de Juventude e de trabalhadores, inicialmente por transporte, mas avançando para o questionamento de conjunto dos direitos sociais (moradia, saúde, transporte, educação, etc), o Levante Popular da Juventude, seguiu com pouca atividade, seja durante os atos que se seguiram a Junho, seja nos meses de 2014 em que tem se organizado a luta Contra Copa do Mundo, definida como a “Copa dos Patrões” por milhares nas ruas.

Este sumiço, não é coincidência. O Levante, como setor ligado a Consulta Popular e MST, mantém, apesar de seu discurso “revolucionário” em cartilhas de formação, uma posição de apoio entusiasmado, com pequenas críticas, aos governos do PT encabeçados por Lula e Dilma. 


Se em junho, quando “massas” saíram às ruas, buscando resolver com as próprias mãos suas necessidades e justamente colocando em prática a luta por aquilo (saúde, transporte, moradia, emprego, etc) que a Consulta e o Levante juram defender pela via de “mudanças radicais na estrutura do País”,  estes não impulsionaram seus milhares de membros, a razão está em sua visão de tudo “de bom” que deve ser “reivindicado” dos Governos do PT..... apesar da ação independente e ofensiva de milhões de jovens nas Ruas que talvez não entendam o avanço deste governo.
O mesmo vale hoje, para a luta contra a Copa, que aonde estão, os membros do Levante e da Consulta tratam de desorganizar, criticar e boicotar.

Em suas cartilhas de formação (www.consultapopular.org.br/sites/default/files/cartilha%2021_0.pdf), a Consulta Popular trata de maneira muito mais clara e mais aberta do que qualquer um poderia descrever, seu apoio alegre as medidas do Governo Lula e Dilma.

Definem, partindo de suas muitas linhas em que demonstram sua estratégia revolucionária com protagonismo “operário e popular”, como, a partir de 2002, apesar de abandonar o projeto de luta pela tomada do poder (e nos perguntamos se este era o projeto de Lula antes de 2002!), a eleição de Lula e o PT representa um “limite ao avanço” neoliberal (época do capitalismo conhecida pelas privatizações e retirada de direitos trabalhistas) e cita uma série de medidas positivas do Governo.

Que o país tenha avançado como nunca das terceirizações que afetam sobretudo os negros, privatizações de rodovias, de portos, “concessões” privatizantes de aeroportos, manutenção das privatizações da Vale do rio doce, etc, nada disto importa.

Demonstram, no entanto, como o Brasil sai, com Lula, da servidão colonial para uma política que visa os interesses nacionais e é cada vez mais independente; como o Governo realiza os grandes projetos sociais conhecidos como o Bolsa Família, o Reuni, o Prouni; e finalizam com a afirmação de que, com a vitória de Dilma, seguem estas medidas e se dá a vitória sobre “os setores da Igrejas Católica conservadora e Pentecostais”.

Dentre estas medidas, criticáveis em si, como o Bolsa Família que não chega a distribuir nem 0,4% do PIB brasileiro, enquanto para os Bancos e Banqueiros o governo paga 47% do Orçamento do PIB como juros da dívida pública; ou o delírio de dizer que Dilma derrotou os Evangélicos e a Igreja Católica, enquanto não apenas o PT se elegeu com o APOIO destes setores, vendendo as pautas da luta pela legalização do aborto, pelo casamento homossexual, etc, como abriu espaço para que Bolsonaro e Feliciano fossem membros que tomassem parte e dirigissem comissões como de direitos humanos, fazendo afirmações machistas, racistas e homofóbicas sem punição; destaca-se, pelo Levante, a defesa de projetos como o ProUni e Reuni que tem sido já criticados há um bom tempo por estudantes em todo o país.

O primeiro, pelo fato de que o governo paga milhares por uma vaga a uma universidade privada, ao invés de criar outras públicas e gratuitas, alimentando a educação como mercadoria e fomentando monopólios como Anhanguera, Unip etc; o segundo, cujo “balanço e crítica” já foi feito pela greve de TODAS as universidades federais em 2012, pois significa uma expansão de vagas sem nenhuma estrutura (não existiam prédios, alojamentos, restaurantes universitários, transporte, professores, etc).

De toda esta definição, afirmam que, dentro de sua tática, devem apoiar as coisas benéficas a classe trabalhadora e criticar as ruins, pois, num governo em que definem, como de Conciliação de classes (quando partidos ditos “operários” governam em conjunto e muitas vezes a serviço dos empresários e capitalistas) é necessário “usar as contradições” para “criar a força social própria”.

Que nos principais momentos aonde esta “força social própria” tratou de dar seus primeiros passos, eles estivessem ao lado do governo e não do “sujeito social” da revolução, não julgam importante dizer.

E não é exagero dizê-lo.
O boicote ao não atuarem como organização, a Junho, talvez por medo de desgastar o tão “progressista governo do PT” e o boicote a Luta contra a copa são um exemplo.

O amordaçamento completo do MST (atestado seja por partidos de esquerda na oposição, seja por intelectuais), que em 12 anos de governo do PT praticamente só seguiu e aplaudiu as “conquistas”, se inscreveu nos planos de auxílio assistencialista e esperou o pão prometido, afastando-se de sua história de ocupações de terras de latifundiários matadores de camponeses, é outro exemplo.

E é aqui que se retorna ao cerne da questão.
Em junho, face a maior manifestação de luta popular, juvenil e de setores proletários da história recente do Brasil o governo do PT pela primeira vez se viu encurralado.

Com seus índices de aprovação caindo vertiginosamente, as manifestações atingindo a Copa das Confederações, cada vez mais repressão, mortes nos atos, atos cada vez maiores, tentativas de invasão de prédios do governo nos estados e em Brasília, Dilma precisou dar uma cartada para aliviar a pressão.

Em meio as manifestações, enquanto apoiava a estratégia de criminalizar o movimento e dividi-lo entre “pacíficos e vândalos”, para esvaziar os atos com o medo, o Governo cantou aos ventos a ideia de uma “Constituição Exclusiva” ou “reforma na constituição” ou “reforma política” que, assim, de pouco em pouco, foi desaparecendo até chegar a nada e mais do mesmo: repressão e falta de direitos.

Com esta reforma política, Dilma tentou desviar a atenção dos manifestantes, prometendo melhorar o sistema político, ampliar a representação, impedir a corrupção, impedir as empresas de (sic) influenciar na política, garantir vias de melhorar saúde, educação, moradia, enfim, de salvar o Brasil. Pois bem. A estratégia da repressão teve efetividade e Dilma e a base aliada esqueceram rapidamente esta história.

Mas eis que o Levante Popular da Juventude, cuja falta não sentimos tanto, trata de, após boicotar dezenas de atos em junho ou este ano, relembrar esta tão bela ilusão e colocar, como expressão de “luta” de seus milhares de membros, mil jovens na rua por uma Reforma política que, segundo eles possibilitará “
uma reformulação do sistema eleitoral e de representação democrática no país”....Tal como Dilma nos disse há um ano.
 Não explicam que reformulação, de que forma se consegue “acumular forças” proletárias, como  conseguir as demandas de saúde, educação, moradia e transporte, enfim, nada.

Tratam, assim, de apenas prestam um excelente serviço, com “cara jovem”, a uma velha política de ilusão, desvio e enganação digna dos mais velhacos burocratas do PT, que, caso reorganizem um "sistema eleitoral", infelizmente para os "revolucionários" da Consulta, que embelezam esta proposta como via de "limpeza e moralização" da política, não farão a não ser em seu interesse e no daqueles poucos magnatas, banqueiros e empresários que financiaram e financiam suas campanhas e privilégios "extraoficiais".

Felizmente, o chão ainda está quente. Milhares de jovens entendem o que foi Junho e entendem como o Governo, com todas suas forças, trataram de afogá-lo em mentiras e repressão. Muitos ainda tem de abrir os olhos. Mas o sangue segue quente. Senão dos que lutam para mostrar que a luta deve continuar, então o dos operários mortos nos estádios da Copa.

Ao afirmarem suas pretensas “convicções revolucionárias” o Levante ainda consegue enganar alguns. Certamente alguns honestos. No entanto, basta chamar as coisas pelo seu nome e suas ações para, como diziam alguns revolucionários irredutíveis do passado, as coisas se desmancharem no ar.

A luta pelas questões estruturais que afligem a juventude, classe trabalhadora e os oprimidos seguem sendo tarefa dos trabalhadores.
Estes, a cada dia entendem, como a Greve dos Garis do RJ nos demonstra, que efetivamente e não em palavras, só podem contar com suas próprias forças, organizando Greves, atos, cortes de ruas, ultrapassando os burocratas sindicais de CUT, CTB UGT, FORÇA, e arrancando a força, como diziam, “sem arrego”, aquilo que o governo lhes retira em nome dos interesses do capitalismo.

Um operário, um jovem, um favelado, que foi às ruas em Junho, repudia a Copa, atropela a Justiça e a Burocracia que impedem sua greve, mas, ainda assim, não vê, por mil motivos, a necessidade e as vias para a revolução, está mil vezes mais próximos desta e vale mil toneladas mais do que “revolucionários” que nos dias de festa falam de revolução e nos dias de luta correm aos compadres do Governo e do Patrão.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Elementos básicos acerca da discussão sobre o trote

Elementos básicos acerca da discussão sobre o trote[1]

Escrevemos este texto anteriormente a tormarmos conhecimentos das atrocidades dos trotes ocorridos na Unesp em 2014, como no trote homofóbico na Unesp Jaboticabal, e nos trotes machista de Botucatu, que se somam ao nefasto histórico de violências dos trotes. Não relataremos aqui os detalhes das práticas de tortura naturalizadas como tradição, mas buscamos uma breve compreensão acerca destas práticas, engajados na construção de uma luta que parta do questionamento dos trotes ao questionamento do caráter de classe do projeto de educação que temos.
Introdução: trote, estrutura de poder, e a comemoração do vestibular

O trote é a passada do cavalo que está entre seu ritmo ordinário e o galope. A habituação do cavalo ao ritmo deste passo se dá por meio de uma força externa, ao controle do cavaleiro. O passo é aprendido, se preciso, a esporadas e golpes físicos. O trote estudantil guarda alguma proximidade ao do cavalo. É uma modalidade de “integração” que se efetua por uma habituação do estudante a uma passada específica, um ritmo, uma ordem. O estudante que se entende como veterano, respaldado pelos interesses da instituição, assume para si o papel do cavaleiro, que irá exercer controle, se preciso a esporadas, na adequação do ingressante à ordem do novo espaço.
Esse espaço é uma universidade com uma estrutura política totalmente anti-democrática. Seus regimentos herdados da ditadura militar criminalizam a organização do movimento estudantil e de todos aqueles que lutam por um outro projeto de universidade, que esteja à serviço dos trabalhadores e conjunto da população. Os reitores são escolhidos a dedo pelo governador, de forma alheia a qualquer decisão democrática. Seus principais órgãos deliberativos funcionam através do 70/15/15 (70% de peso decisório para os professores, e apenas 15% a cada um dos outros dois segmentos, a dizer, funcionários e estudantes).
A população que paga a universidade através de seus impostos não tem voz nenhuma neste espaço, bem como tem seu acesso barrado pelo vestibular. O financiamento das pesquisas é voltado ao benefício da classe dominante. Seus recursos são advindos dos impostos cobrados sobre a classe trabalhadora, mas não é permitido o acesso do conjunto desta classe, através do filtro social que é o vestibular. A verba pública é direcionada segundo interesses privados.
A estrutura anti-democrática da universidade pública não se dá no vazio. Esta universidade é uma instituição de ensino de um Estado que tem um conteúdo de classe, que serve como palco de execução dos negócios particulares da classe burguesa. A estrutura de poder da universidade está, portanto, a serviço da manutenção da ordem burguesa. A falta de democracia da gestão universitária está a serviço de manter um projeto de universidade comandado de acordo com os interesses da classe capitalista.
O vestibular é um processo de seleção que tem por objetivo deixar uma parcela da população fora da universidade pública. Poucos estudantes conseguem passar por este funil. O trote cada vez mais é veiculado em materiais publicitários como um momento de festejo acerca do “mérito” do ingressante. É uma espécie de recompensa pelo esforço de estudo. Esta óptica de visão sobre o vestibular faz com que, ainda que muitos ingressantes repudiem os trotes, outros desejam recebê-lo. Desta forma, os festejos dos trotes possuem um conteúdo formado por anos de educação sob uma lógica neo-liberal na qual o ensino superior público não é direito de todos, mas é condicionado ao “mérito” de alguns. Por isso se festeja, por isso é uma alegria ter a pele marcada, por ser merecedor das raras vagas, por ser um dos poucos deste sistema de exclusão.
A relação com o projeto neo-liberal de educação não fica por aí. O Trote Universitário, pode ser entendido como uma prática educativa que tem como uma de suas principais funções naturalizar a estrutura de poder anti-democratica e autoritária da universidade aos “novos” que chegam, e logo ajustá-los à ela. O trote ensina, fundamentalmente conteúdos subjetivos como se submeter a uma ordem, não ter voz, obedecer, conteúdos de conduta caros à uma universidade antidemocrática. O trote cumpre o papel de o quanto antes adestrar os “bixos” ao passo correto da universidade.
Ao mesmo tempo que o autoritarismo e submissão presentes no ambiente do trote encontram respaldo na meritocracia e no autoritarismo da atual estrutura de poder da universidade para se legitimar, dialeticamente, esse mesmo ambiente do trote cumpre o papel de educar os ingressantes à naturalidade dessa mesma meritocracia e estrutura de poder. Aqui é importante ressaltar que o combate ao trote universitário deve ser entendido não apenas como o combate à violência entranhada nas diversas atividades que ocorrem especificamente nos dias de matricula e nas primeiras semanas de aulas (elefantinho, pedágio, raspagem de cabelo etc.), mas principalmente como um combate à lógica que está de fundo à essas atividades, que é a própria lógica do atual projeto de universidade e de sua estrutura de poder.
Desse modo a internalização da ordem universitária vai se dando em diferentes momentos: No primeiro contato com a universidade, a partir do Trote Formal, quando a lógica da estrutura de poder arcaica da universidade revela-se de maneira totalmente despida e caricatural através das atividades que ocorrem nas primeiras semanas de aula envolvendo “bixos” e “veteranos”; Num momento posterior, como uma espécie de “trote cotidiano”, através das próprias relações cotidianas mais corriqueiras entre os estudantes, muitas vezes pautadas pela mesma lógica de submissão expressada nas atividades do trote. É muito comum em republicas, por exemplo, meses após ter ingressado na universidade, o primeiro-anista ser obrigado pelos “veteranos” à ter que servi-los, limpar a casa, cozinhar ou pagar cervejas aos demais justamente pela sua condição de “bixo”. Aqui poderíamos dar diversos exemplos de como a lógica caricatural expressa nas atividades das primeiras semanas relacionadas ao trote, permanece cotidianamente na relação entre muitos estudantes.
É importante percebermos que o autoritarismo legitimado e naturalizado nas relações pautadas pelo trote universitário, que legitimam o “veterano” a tranquilamente poder ordenar, punir, humilhar, invadir o corpo do outro, possui uma ligação direta com o autoritarismo do regime disciplinar da universidade remanescente da ditadura militar que naturalmente também pune aqueles que atentam contra a “boa ordem”, “a boa moral e os bons costumes”. É neste sentido que a submissão experenciada por diversos estudantes ingressantes, não apenas no momento e nas atividades do trote formal (dias de matricula e primeira semana de aula), mas também numa lógica de relação cotidiana com os estudantes mais velhos na qual está implícita a sua submissão, que se estende ao longo dos anos, são eficientes praticas educativas que naturalizarão a atual estrutura de poder da universidade diante de quem ingressa na universidade.

A Divisão entre Trote “Leve”, “Médio” e “Violento”

A consideração das práticas do trote como violentas é questionada através do argumento da “integração” ser uma necessidade no início do ano letivo. Todavia podem haver distintas formas de integrar-se, sem que esteja pressuposta uma relação de hierarquia e opressão. Há uma parte dos trotes que é vista mais facilmente como repugnante, no caso, aqueles que chegam a levar estudantes ao óbito, ou deixam sequelas físicas irreparáveis. Por exemplo: Em 2003, Ugo Boattini Jr., 19 anos, abandonou o curso de engenharia na Unesp-Guratinguetá, depois de ter um peso de 7 kg amarrados aos genitais durante o trote; Também em 2003 Encapuzados e carregando tochas, lembrando as vestimentas da Ku Klux Klan, alunos veteranos do curso de Medicina Veterinária da Usp, obrigaram os ingressantes a tomarem banho com um liquido retirado do estomago de gado, a comer grama e a rolar na lama e no estrume de roupas intimas; F.A.C, 17 anos, de foi obrigado a rolar na lama e a comer ovo podre, tendo um ovo introduzido em seu ânus, durante o trote da Universidade Federal do Mato-Grosso do Sul em 1998; Ou mesmo quando o trote acaba em assassinatos, como no caso de Edson, ingressante em medicina da USP em 1999.
Geralmente estes casos são noticiados pela mídia, gerando perplexidade nos leitores. Todavia, o remédio que a própria mídia burguesa costuma fornecer a estes casos, largamente aceito como medida de resolução, são os exemplos de “trotes solidários”. Esta é inclusive uma prática adotada por diversas instituições de ensino como política que visa teoricamente coibir os “trotes violentos”, nestes escritos oficiais substitui-se o termo “bixo” por outro um pouco mais polido, o termo “calouro”.
Gesta-se desta forma uma separação entre gradações de tipos de trotes na qual uma parte deles é considerada inadmissível, colocados no campo de “violência”, devendo ser repudiados e punidos; ao passo que outras formas são naturalizadas no campo da “brincadeira” e “integração” saudáveis. Esta gradação é um tanto quanto questionável, e de difícil mensuração. O tom de voz; a intimidação; as ordens recebidas à todo instante, a submissão do primeiro-anista explícita no ar; as “brincadeiras” constrangedoras e opressoras; a tensão, a ridicularização dos apelidos; a pressão para se cortar o cabelo; a taxa em dinheiro para não levar ovadas; enfim a condição de “bixos” e “bixetes” que precisam ser adestrados à ordem que rege a universidade. Assim, algumas práticas de trote extremamente violentas por vezes são classificadas como “brincadeiras”. Em um ambiente no qual os poros estão abertos à opressão, um apelido racista com o qual um ingressante é batizado pode ser considerado uma “brincadeira”, todavia, este momento pode deixar uma marca violentamente profunda neste estudante. Quem são os juízes que decidem quais os limites entre o trote leve e o violento? Entre a integração saudável e a violação? Ainda que pareça um “simples” corte de cabelo ou pintura de rosto em trotes considerados “leves”, temos de estar sensíveis às formas de violência intrínsecas à própria lógica do trote, sem jamais normatizar a intimidação, a submissão, os constrangimentos, o machismo, a homofobia, o racismo presentes nestes ambientes “leves”.
Para a universidade, que se beneficia do trote universitário, o combate à este passa por mantê-lo sob formas um pouco mais “leves”, negando o problema existente em sua gênese enquanto tradição, sendo na verdade uma defesa velada da violência nas relações, pois como dissemos, a variação entre leve e violento é uma farsa. A ideia de que deva existir um ritual especial ao início do ano, ainda que sem violências mais claramente expressas, é na verdade associada a óptica burguesa sobre a vitória meritocrática que é passar no vestibular, e a necessidade de festejo e divulgação deste acontecimento que é ter sido um dos poucos a ingressar num processo seletivo excludente. Caso contrário, a integração não necessitaria de nenhum ritual especial. A manutenção desta tradição, ainda que se tente ligeiramente modificar parte das práticas a ela associada, já é violenta em sua gênese. Quando se mantém formato de relação veterano-bixo, mesmo com um “veterano gente fina”, a desigualdade está pressuposta na relação, e o campo para violações estará aberto, dependente apenas dos critérios do próprio “veterano”.
É comum que muitos estudantes relativizem a violência dos trotes. As opressões são impressionantes e se repetem todo ano nas universidades em um nível de violência e abrangência inegável, os exemplos divulgados pela mídia são numerosos, fora os não divulgados, são conhecidos pela proximidade a práticas de tortura. Acerca destes casos mais reconhecidamente violentos é mais fácil que se tenham acordos acerca dos “abusos”. Mas é fato também que nem em todos os casos as violências sejam tão claramente expressas como estas práticas de tortura, e é sobre este aspecto que buscamos aqui evidenciar.
Muitas vezes, inseridos em diversas contradições, alguns ingressantes até desejam receber trotes, por ser um momento que é um marco na vida deles. O combate contra o trote neste sentido ganha contornos complexos, pois temos que ser compreensivos e não mecânicos neste combate. Muitas vezes o caráter violento do trote fica borrado e escamoteado, principalmente quando é um trote considerado “leve”. Alguns estudantes mais antigos, ainda que tentem se aparentar mais democráticos, muitas vezes acabam reiterando com pequenas atitudes elementos de trote e de autoritarismo absolutamente desnecessários à integração, estas pequenas atitudes fazem parte do trote, e seguem a mesma lógica de relação dos trotes que levam a torturas.
Todavia, ainda que algumas situações sejam mais complexas e repletas de ambiguidades, não há relativismo que negue o caráter hegemonicamente violento dos trotes. A polidez do termo “calouro” em substituição a “bixo” procura esconder que a universidade é conivente com as práticas dos trotes, escondendo que estas práticas ocorrem normalmente. O uso da lei pela burocracia só se torna mais rígido quando trata-se de “trotes violentos” ao ponto de ferir a imagem da própria universidade, caso contrário, os conteúdos aprendidos nos trotes estão em plena consonância ao funcionamento ordinário desta instituição anti-democrática. A mesma lógica autoritária de relação está presente nos trotes “leves” ou “violentos”, sendo que, constantemente, um tipo pode levar ao outro. Fazendo uma breve pesquisa acerca do histórico dos “trotes violentos” vemos que muitos deles se iniciam com práticas consideradas leves. Muitos dos casos mais reconhecidamente violentos são castigos aplicados a estudantes que apresentaram resistência a práticas consideradas leves, por exemplo.

A “Integração” e as Opressões

Integrar-se é estabelecer uma relação. A integração fornecida pelo trote está em consonância à manutenção da atual ordem universitária. O fato de ser uma forma de integração não significa que seja necessária, ou que seja o único tipo de integração possível. O estabelecimento de relação entre estudantes pode se dar numa condição de igualdade de posições entre os interlocutores. Ou, como ocorre nos trotes, numa condição de desigualdade de posições, se manifestando nas “calouradas” através das designações “veterano” e “bixo”. A integração estabelecida entre “veteranos” e “bixos” durante o trote se dá por meio de ordem e controle autoritários. A submissão está presente nas “brincadeiras”, que por vezes são humilhações morais, por vezes são também castigos físicos. Nesta forma de integração, submeter-se às “brincadeiras” de bom grado é condição necessária à integração “sadia”, sem punições físicas, morais, chacotas, insultos ou isolamentos.
A estrutura de funcionamento da integração promovida pelo trote, na qual está pressuposta uma posição desigual entre os interlocutores, abre à diversas formas de opressão. Se em alguns outros tipos de relação os estudantes encontram menos respaldo social e até resistência diante de ações opressivas, numa relação em que a hierarquia é legitimada, tornando-se inclusive praticamente condição necessária à aclimatação do estudante no espaço universitário, a perpetuação de opressões ganha terreno fértil. O ambiente do trote é perfeitamente adequado ao machismo, um ambiente perfeito à toda violência de gênero, racismo, homofobia, transfobia, lesbofobia e misoginia. Com uma rápida pesquisa podemos perceber que não faltam exemplos, ano após ano, de opressões relacionadas aos trotes.
São muitas vezes nas formas de trote colocadas no âmbito do “leve”, da “brincadeira”, da simples “integração”, e logo da normalidade, que encontramos um caminho aberto para as opressões. A própria naturalização da submissão da condição de “bixo” em relação à de “veterano”, abre brecha para uma serie de assédios dos veteranos em relação às primeiro-anistas, não sendo raro os casos de estupros de ingressantes. O corpo da mulher muitas vezes é apropriado por atividades do trote que possuem conotação sexual, de maneira à expor as primeiro-anistas à situações de violência e constrangimento: ser obrigada a chupar banana e outros objetos na frente de todos, dançar de maneira sensual, desfilar de roupas intimas etc.

                              Ingressante obrigada a chupar objeto, trote Agronomia UnB 2011.

 Da mesma forma as diversas expressões de racismo e homofobia também encontram espaço aberto dentro do ambiente do trote, se expressando através de apelidos que visam ridicularizar os primeiro-anistas, humilhações, agressões físicas e verbais e etc. Recentemente tivemos o caso do trote da UFMG que expressou um exemplo claro do racismo presente nas universidades.



















O termo “bixo”

O termo “bixo” claramente remete à desumanização do estudante ingressante, à sua incapacidade de decisão própria, necessitando de um guia que ensine seus passos, como um cavaleiro e seu cavalo, utilizando a mesma analogia. O “bixo” não é ainda humano o suficiente para participar do espaço em condição de igualdade, é aspirante a tal, mediante as provas que irá ter que passar, até que passe por toda uma batelada de rituais tão tradicionais quanto for a criatividade dos inventores da tradição no momento. O uso do termo “bixo” é em si ofensivo. Há, por outro lado uma substituição diplomática pelo termo “calouro”. Assim como a universidade reitera a lógica de submissão ao estabelecer algum tipo de punição apenas em casos extremos aos aplicadores de trote, mas, por outro lado elogiar os trotes “saudáveis”, quando usa o termo “calouro” em substituição a “bixo” acaba utilizando o mesmo sentido só que uma palavra diferente, que escamoteia o tipo de relação pressuposta.
Em Marilia, já há alguns anos, substituímos o termo “Calourada” por “Ingressada”. O significado de “calouro” é também problemático, no sentido de se referir, assim como o termo “bixo”, a alguém que almeja ser algo que ainda não é. Assim como na música, um calouro ainda não é cantor, mas apenas aspirante a tal, um aspirante que deve passar pelo julgamento dos mais experientes, o calouro na universidade é uma espécie de aspirante a estudante, que ainda passará por algumas provas. É uma relação distintiva do ingressante para os demais estudantes. O problema não é o termo em si, pois seu significado poderia ser alterado, mas reside exatamente na tradição de seu uso. As “calouradas” tornaram-se tradicionalmente as ocasiões onde os trotes ocorrem, e este tipo de relação se estabelece entre os estudantes. Devemos ir contra a reivindicação desta tradição. O termo “calouro” é apenas uma maneira mais formal e “leve” de dizer “bixo”. A mudança por qualquer outro termo que mantenha o mesmo conteúdo não resolve o problema, pois de fundo, o problema é a que tipo de relação estes termos se referem materialmente e não as palavras em si, contudo, exatamente por isso, por hoje estes termos estarem totalmente conectados às práticas às quais se referem, eles mesmos tornam-se ofensivos e organicamente atrelados a tradição autoritária material do trote, e o uso deles referido a esta tradição autoritária, devendo portanto, ser cuidadosamente pensado.

 “Tradição Acadêmica”, vestibular e o trote como festejo de uma universidade elitista

Ainda que muitos reconheçam alguns problemas relacionados ao trote, há uma representação deste que o torna indiscutível em alguns meios. O trote é representado como sendo uma tradição. Este fato torna possível que em alguns casos os próprios estudantes sofram abusos, submetam-se a ordens, concebendo esta postura como uma espécie de manutenção de uma tradição de sociabilidade. Uma tradição é mantida sem nenhuma explicação racional necessária. Quando representado como tradição, o trote é tirado do terreno de discussão. Tenta-se dar ao trote o caráter de ser uma prática a qual todas as pessoas presentes nas universidades e todas as que já passaram por ela participaram, aparentando ainda, ser algo que “sempre” ocorreu, logo tornando os questionamentos e outras possibilidades, muito pequenos diante da imensidão desse “sempre imemorável”.
Toda a tradição possui agentes de sua reprodução, a tradição não possui poder superior aos agentes, isto é uma ilusão. Basta que seus guardiões deixem de reproduzir uma determinada tradição para que ela deixe de existir. As tradições ganham um status secular, todavia, são inventadas a cada vez que alguém as reproduz. São historicamente mutáveis. Os próprios trotes ganham novidades ano a ano. O Clero durante o Feudalismo manteve a perpetuação das tradições que os interessava através da inquisição, das torturas. É uma decisão política abandoná-las ou mantê-las. Assim como os membros do clero do período citado, hoje temos universitários decididos a serem guardiões desta “tradição” de integração, dispostos a interferirem no corpo do estudante do primeiro ano, a humilharem, a maltratarem, inclusive aplicando punições e castigos.
A representação do trote como tradição e sua reprodução tem base não apenas na decisão dos “veteranos” de cada ano (nem sempre estes estudantes estão completamente consciente politicamente acerca de suas práticas), é um processo de longa duração, que não à toa está atrelado a interesses da classe dominante. A raridade de vagas na universidade pública se dá por um projeto de educação que busca favorecer os interesses dos grandes empresários, mantendo a maior parte do ensino superior brasileiro relegado à iniciativa privada, transformando educação em um negócio muito lucrativo[2], à revelia da qualidade do ensino e da oferta de vagas em instituições públicas, que se daria através da estatização das privadas[3].
O filtro do vestibular nas universidades públicas faz movimentar os lucros também do imenso número de cursinhos pré-vestibulares privados. No interior destes cursinhos já se inicia o processo de educação necessário a passar no vestibular, o qual o trote irá dar o retoque final. O trote nas propagandas destes cursinhos é veiculado como símbolo de uma conquista, como vitória num processo de concorrência no qual a maioria ficou de fora, perdeu (“Faça Anglo, Vire Bixo”, por exemplo). Aqui o direito ao ensino superior fica condicionado ao mérito individual, sendo fruto de uma conquista, desta forma fica escondido o fato do Estado não oferecer ensino superior público a todos. Sob esta perspectiva veiculada, os estudantes que conseguem passar no processo seletivo, adentram na universidade por seus próprios méritos, por outro lado, os que não adentram, ficam de fora por seus deméritos. O peso da insuficiência da política de educação recai não sobre o Estado, mas sobre os ombros dos indivíduos que sofreram por esta insuficiência. Sob esta óptica invertida, não é o Estado culpado por não oferecer possibilidade de acesso e vagas suficientes num ensino superior público e de qualidade, mas os próprios indivíduos que ficam de fora deste projeto de educação excludente que passam a ser culpabilizados por não terem conseguido passar na prova, ou são “incapazes”, ou não são suficientemente esforçados nos estudos.
Ensinando os estudantes secundaristas a olharem o vestibular com este ponto de vista, nos cursinhos aprende-se de maneira não consciente aspectos importantes da ideologia dominante, de competição entre os estudantes que encontram-se numa mesma condição. A ideologia dominante de um tempo é a ideologia da classe dominante. A óptica invertida de visão sobre o que é o vestibular, a imagem que a burguesia cria sobre este filtro, de acordo com seus próprios interesses, se manifesta no significado que se dá ao sucesso ou insucesso neste processo seletivo.
Neste sentido, alguns estudantes chegam ao primeiro ano aguardando um ritual festivo, que marque sua pele para que possa tirar uma foto e divulgar sua vitória, festejando seus próprios méritos, e reproduzindo a óptica burguesa sobre este processo seletivo. A relação do ingressante, portanto, com a tradição do trote, pode ser ortodoxa e heterodoxa. Alguns estudantes primeiro-anistas educados nesta lógica submetem-se a certos constrangimentos, chegando a reivindicar a aplicação do trote. Em seu texto “O trote no curso de pedagogia e a prazerosa integração sadomasoquista”, Antonio Zuin da Universidade Federal de São Carlos, relata a entrevista de uma mãe que considerou ser pouca coisa, e até mesmo sem graça, apenas rasparem o cabelo e pintarem o rosto do seu filho, afirmando que se ela fosse a veterana “teria feito muito mais” e que seu filho não poderia “voltar para casa sem portar sinais que o identificassem como alguém que havia passado na Usp”.
A falta de democracia no próprio acesso à universidade já está introjetada num ponto em que ingressar nela é aceitar moldar-se sob sua lógica. Esta postura de legitimação em relação ao trote não é moral, mas é a forma como o estudante materialmente aprendeu a lidar com este momento de transição que é momento do ingresso na universidade. Posteriormente elx pode romper ou não, alguns já rompem com esta lógica desde o início, resistindo aos “veteranos”, e rebelando-se. Por outro lado vemos também primeiro-anistas que são bastantes sensíveis aos constrangimentos e violências característicos do trote, de modo a se posicionarem de maneira contraria à “tradição”, se negando a participar ou a cumprir ordens dos “veteranos”, apesar de todo ambiente adverso do trote.
Um fato interessante de ser notado é que muitos estudantes que dizem ter gostado do trote, reivindicando-o e até dizendo que pretendem continuar com a “tradição” quando forem veteranos, se tivermos oportunidade de dialogar, em geral sempre relatam alguns momentos nos quais se sentiram constrangidos ou que gostaram menos. Essa ambiguidade entre integração e tensão, sorrisos e ordens autoritárias, “brincadeiras” e constrangimento é característica do trote.

O Combate ao Trote e Experiência de Marília 

Assim combater o trote, ligando-o à discussão da estrutura de poder da universidade, significa criar um espaço na ingressada para que haja formas de integração entre os estudantes no qual se combata a lógica de submissão do estudante ingressante em relação aos demais estudantes, no qual nos coloquemos de maneira extremamente sensível ao combate à qualquer expressão da lógica do trote em nossas relações, politizando a discussão no sentido do questionamento ao projeto de universidade. Criando esse espaço, no qual o primeiro-anista saiba que não será chamado de “bixo”, que não receberá “ordens” e nem será tratado com desdém e humilhação, conseguiremos nos aproximar tanto de uma serie de estudantes que chegam à universidade com muitos incômodos em relação ao trote e sua lógica, bem como também conseguiremos dialogar com os incômodos mesmo daqueles que se colocam a favor do trote. Neste sentido a Luta pelo fim do vestibular deve passar necessariamente pela luta contra os trotes, pois estes são diretamente relacionados à raridade das vagas, são a continuidade do processo seletivo, segregando e selecionando estudantes, são a manifestação em ritual do festejo da vitória e da meritocracia. Assim como o vestibular não é um sistema de ingresso, e sim um sistema de exclusão, uma vez que a experiência da maioria que o presta não é de ingressar na universidade através dele, mas de ser barrado, o trote também não é um ritual de integração neutra, mas de humilhação sistemática, de opressão, de exclusão de determinadas rodas, de afunilamento, de habituação forçada, de perpetuação das opressões, continuando um processo seletivo já iniciado desde os cursinhos, desde toda a vida, iniciando as práticas educativas da ordem dominante e da estrutura de poder da universidade. O questionamento do trote é o questionamento da estrutura de poder da qual o trote é parte constitutiva ao ensinar a sujeição à falta de democracia desde os momentos iniciais que se adentra nela.

Por fim a reflexão e experiência de combate ao trote que temos em Marília, que passa desde a organização de discussões sobre o trote ligando-o à questão da estrutura de poder e opressões, até a forma como estabelecemos relacionamento com os ingressantes, tem sido uma ponte importante de aproximação com os estudantes do primeiro ano, pois somos um grupo consequente que tem acúmulo e tradição nesta discussão. Organizamos panfletos sobre o tema e campanhas visuais com frases do tipo: “Nem Bixo, Nem Bixete, Nem Veterano: Por uma integração horizontal entre os estudantes”, “O Autoritarismo do Trote bebe no Autoritarismo da Estrutura de Poder da Universidade”; “Por uma integração horizontal entre os estudantes: sem ordens, sem constrangimento, sem submissão”; etc. As mesas organizadas por nós sobre o tema alcançam uma audiência importante para abordarmos o questionamento da lógica dos trotes e para abrirmos sensivelmente uma série de debates políticos com os estudantes dos primeiros anos que são mais tocados por esta questão.  Travamos uma discussão que parte do questionamento aos trotes universitários ao questionamento do projeto de educação e da lógica do capital.



[1] Este texto contém alguns elementos mais básicos das conclusões acerca das discussões sobre o trote realizadas em Marília nos últimos anos. Aqui apenas resumimos alguns dos principais pontos que norteiam a luta que travamos pelo trote. Temos intenção de elaborar um texto destrinchando mais os argumentos, com dados que temos reunidos, e elementos do histórico dos trotes que levam a nossas conclusões com mais propriedade.
[2] O ímpeto do capitalista que investe na área de educação não é o valor de uso, mas o valor de troca. A qualidade do ensino não interessa tanto quanto sua lucratividade.
[3] Para que não confundam com políticas de expansão baseadas na precarização como o REUNI, falo de uma expansão das vagas no ensino público, mas tendo em vista qualidade deste ensino, que funcione numa auto-organização, num governo tripartite entre os três segmentos, com fim do reitorado, numa educação a serviço da classe trabalhadora, que volte suas pesquisas ao benefício da população. A “qualidade” do ensino não tem um caráter neutro neste sentido, mas assume a forma de qualidade para a classe trabalhadora. De maneira imediata defendemos o fim do vestibular com a estatização das universidades privadas.

domingo, 13 de abril de 2014

Na ditadura de Gama e Silva; na democracia de Rodas e Zago: segue a estrutura “feudal” da USP.

Por André Bof, estudante de Ciências Sociais da USP, militante da Juventude às Ruas

O ano de 2014 começa com uma suposta “mudança de ares” na USP. 
Buscando se localizar “democraticamente”, tendo em vista as eleições de 2014 e o desgaste que poderia lhe causar a continuidade da “crise de democracia” na universidade, Alckmin, que a frente do Governo do Estado deu todo suporte a antiga gestão repressora de Rodas, escolheu Zago, ex-Pró Reitor de pesquisa da USP e o “mais votado” na consulta feita para legitimar as eleições antidemocráticas com ares de democracia, como novo REItor da USP.

De cara, teve de enfrentar os problemas deixados como legado maldito da gestão Rodas. Até para os calouros mais novos, deve ser conhecido o estrago feito por esta gestão. Rodas, ex-professor da Faculdade de Direito, possui um histórico tão sombrio quanto a missão que lhe foi confiada. 

Como diretor, foi o responsável pelo chamado da tropa de choque para reprimir movimentos sociais dentro do prédio das arcadas; no dia de sua posse, convocou a força tática para reprimir com bombas e tiros de borracha uma manifestação que repudiava sua pomposa posse ao som de orquestra, dentro da Sala São Paulo; durante a greve de trabalhadores em 2010, impôs um mês de corte de salário contra os trabalhadores e, em 2011, legitimou a presença da PM no campus e utilizando-se desta, militarizou a USP como somente a Ditadura militar o fez, colocando 400 PM’s de elite com cachorros, bombas, rapel para desalojar o prédio da Reitoria, ocupado politicamente, e prender 73 estudantes, dentre eles uma jovem que foi torturada, com uma mordaça dentro do prédio.

Posteriormente a isto, já habituado ao clima de governo absoluto, Rodas processou toda a diretoria do SINTUSP, buscando demitir diretores que se aliaram a centenas de trabalhadoras terceirizadas que paralisaram contra a miséria de suas funções; construiu um monumento a “Revolução de 64” em frente ao Crusp; processou dezenas de estudantes numa espécie de tribunal/comissão que acusava/julgava/punia e, em 2013, como cereja do Bolo, manteve toda a intransigência, acenando com promessas vagas e mais repressão... 

Isto tudo, afinal, estava a serviço de um plano, arquitetado há muito tempo e que os governos em geral, como o PSDB a frente, tentam implementar, desde 2007, quando ocorrem as importantes greves da USP, UNESP e Unicamp, as quais abrem um “reascender” no M.E. (movimento estudantil).

Desde que assume, Rodas define a USP como uma “terra de ninguém”, aonde a Lei não chega, os trabalhadores fazem greves (!!!), as pesquisas operacionais (mercadológicas) encontram questionamento em ideologias arcaicas e que, desde 2007, começa a elevar uma crescente oposição ao projeto de Universidade das elites. 
Para por um basta a isto, Rodas é empossado, sendo o segundo da lista tríplice, por Serra e começa a estratégia de desmonte do movimento de trabalhadores, em primeiro lugar, e de divisão dos estudantes e ataque ao movimento estudantil.

Os trabalhadores da USP haviam, em todos os momentos de luta da USP, desde 2002 e antes, estado ao lado dos estudantes e em greves que garantiram importantes conquistas. Em 2002 apoiaram uma greve de 3 meses na FFLCH por professores e pelo chamado “gatilho de contratação” que contratava automaticamente professores caso houvesse aposentadoria ou falecimento; em 2004 bancaram greve com enfrentamento na porta da prefeitura da USP; em 2007 levantaram-se contra os decretos do Serra, que buscava investir mais em áreas voltadas ao mercado; em 2009, construiram a mobilização conjunta contra a Univesp (universidade virtual de SP) e democracia; em 2010 pela isonomia salarial, etc.

Ao todo haviam feito mais de 388 dias de greve nos últimos 10 anos, algo inadmissível ao PSDB e, assim, se seguiram todos os ataques e golpes relatados no início do texto. 

O projeto de universidade que Rodas tenta resgatar, no entanto, não é de sua “brilhante” autoria. Suas origens remontam a ditadura militar e, talvez, até anteriormente, quando a Universidade é pensada como um espaço de formação para as elites. Obviamente, no entanto, por dentro do turbilhão de desfigurações que deixou a ditadura, a USP encontrou um papel no plano dos generais.

Tanto no que diz respeito ao conteúdo quanto aos métodos, a ditadura ensinou muito ao PSDB e os reitores a seu serviço. 
Gama e Silva, o ex-ministro da Justiça que assinou o AI-5, abrindo as portas para o período de maior perseguição tortura e assassinatos da ditadura, foi REItor da USP e redigiu seu regimento interno que, não só prevê absurdos como punição a quem atentar a “moral e aos bons costumes” e incitar greves, como segue sendo instrumento para ELIMINAR estudantes (tornar qualquer vínculo com a USP impossível por 10 anos) na mão da Reitoria hoje.

Quanto ao conteúdo, não é necessário dizer muito: a FIESP, fundação dos Industriais de SP (que apoiou o golpe de 64) segue tendo cadeira cativa no C.O. (conselho universitário) ao lado de professores saudosistas da ditadura, donos de empresas terceirizadas e de fundações privadas, a esmagadora maioria no minoritário orgão da autocracia USPiana. Todos estes senhores dão o tom do conteúdo social da USP, como sendo uma universidade elitista, com bilhões de orçamento e quase nada a contribuir para a maioria do povo pobre que a financia com seus impostos. Projetos de pesquisa sobre doenças primárias, que adoecem milhões no Brasil, como a diarréia; projetos de planos de obras públicas para dar emprego e casa; história do povo e das revoltas negras na formação brasileira; tudo isto perde para as pesquisas de Avon, Odebretch, DERSA, FIA, etc...

Zago, o suposto “salvador da pátria”, surge como figura neste cenário. Do ponto de vista histórico, observando a estrutura da USP e seu papel, Zago é apenas mais uma variável. E o sistema necessita de todas elas; Sejam Gama e Silva, sejam Rodas, sejam Zago.

Após a terra arrasada orçamentária deixada por Rodas, como fruto da tentativa de cooptar financeiramente os trabalhadores da USP e de sua extravagância de tapetes persas e banquetes de luxo, Zago se vê na ingrata tarefa de disciplinar a USP com a austeridade. 

Para isto, se utiliza da tática de “dobrar a vara para não perder o peixe”. A crise de democracia e, agora, a crise orçamentária, são questões das quais Zago não pode fugir. Para isto, já prepara uma Autoreforma que, de conjunto, pretende manter tudo como está. 

Em recente entrevista dada ao Jornal do Campus, além de assumir que já fez cortes na Graduação, bolsas de intercâmbio, de bolsas, trabalhos de campo e indicar que irá cortar benefícios dos trabalhadores, Zago aponta a necessidade de aperfeiçoar as instituições burocráticas da USP.
Menciona que agora não é mais um universo tão restrito do C.O. que vota nas eleições (cerca de 300), mas as congregações de unidades (2 mil) e que isto poderia, numa hipótese tão aberta quanto o mar, ser ampliado para os conselhos departamentais.

Ora, quão grande é a nossa surpresa ao perceber que estas “mudanças” só beneficiam... aos professores! Num universo de 100 mil estudantes, 16 mil funcionários, cerca de 5 mil terceirizados, o grande projeto de Zago é ampliar a democracia para... as congregações e os departamentos (!!!), que, se Zago fosse “radical” e rompesse as divisões de “status” entre os professores, abarcaria míseros 5 mil. 
Esta é uma continuidade da atual estrutura que distorce o peso da comunidade em benefício da minoria de professores, sobretudo os titulares, mais privilegiados.

Assim, além de se esquivar da questão da Each, dizendo que cabe a justiça dar uma resposta, não mencionar nada sobre as demissões de terceirizados que incentiva, nada dizer sobre as bolsas e a permanência estudantil, além de que devemos “apertar os cintos”, Zago faz seu papel de “dialoguista”.

No fundo, as estruturas da USP continuam baseadas numa lógica Semi-feudal, sendo a Reitoria o orgão de intervenção a serviço do Senhor; os professores titulares a casta de nobres; o conjunto de professores oscilando entre o “baixo clero” e, junto dos estudantes e trabalhadores, a “plebe”, restando aos Terceirizados o papel de “Sans Cullottes” e/ou “servos”.

Este ano o movimento deve refletir e, sobretudo, agir. Não apenas a abertura e publicação do Orçamento é uma bandeira urgente, como a luta por mais verbas é central. No entanto, esta luta pela cabeça dos Lordes só sairá vitoriosa se entendermos uma simples lição que a luta de classes e, mais recentemente, junho, nos deixou: a plebe unida é uma força irrefreável; sozinho os “senhores” não aguentam. 

Saindo da bolha da USP e lutando por uma universidade com cotas raciais, o Fim do vestibular e estatização do ensino, projetos a serviço das necessidades do povo, permanência, creches e moradia a todos que precisam, uniremos esta plebe e, então, a Bastilha Reitorável, há de cair, abrindo novos Junhos e novas conquistas. 
Mãos A Obra!

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Sobre a consulta eleitoral para Direção da Faculdade de Educação da USP


O ano de 2013 foi marcado por uma forte greve estudantil questionando a atual estrutura de poder da USP e exigindo democracia tanto no que diz respeito ao acesso quanto à gestão da Universidade. Esse movimento paralisou mais de 60 cursos da USP impulsionado por uma ocupação de Reitoria com tamanho apoio democrático que levou a justiça a negar uma primeira liminar de reintegração de posse. Ainda que esse forte movimento, imbuído do espírito das Jornadas de Junho, poderia ter ido muito além do beco sem saída para o qual a gestão do DCE em 2013 o levou (gestão que hoje impulsiona a chapa “Para virar a USP do avesso”), a indignação estudantil com a atual estrutura anti-democrática de decisão dos rumos da Universidade e o anseio latente contra o seu elitismo no acesso e permanência abalaram as estruturas do atual regime universitário herdeiro da Ditadura Militar.

Nesse sentido, a candidatura de Belmira e Diana Vidal para a Diretoria da FEUSP não representam um passo no sentido da luta que os estudantes levaram a frente, muito pelo contrário. Com uma carta à comunidade acadêmica que não passa de uma reprodução quase ipsis litteris[i] de suas propostas quando candidata em 2006(!), a candidatura à Direção, na figura de Belmira, defende a manutenção das Fundações Privadas nas Universidades (como a FAFE na Educação) alegando serem estas parte de uma “cultura” já criada e que representa apenas mais uma “tensão” a ser simplesmente “gerida”. Apresentando de maneira antagônica a inclusão social com a manutenção da qualidade de ensino, a maior verdade que fica evidente de sua carta consta na afirmação de que sua “concepção de universidade é fruto da formação que obteve aqui [na USP]”. Ao formar-se dentro da Universidade mais elitista, racista e anti-democrática da América Latina durante o período da ditadura militar no Brasil, não é de estranhar que sua concepção de Universidade veja antagonismo entre a democratização do seu acesso e aquilo que esta formação meritocrática entende sobre qualidade do seu ensino. Também não é de se estranhar que sua visão sobre a ditadura militar se resuma em “abalos dos anos 60” que, mesmo assim, “mantiveram a notável continuidade” dos objetivos iniciais da USP (objetivo idealizado pela elite paulistana cafeicultora na década de 30).
A carta de Belmira e Diana Vidal se coloca em sintonia com a nova Reitoria da USP, Prof. Zago. Essa nova Reitoria já deixou claro que sua retórica de “diálogo” encobre a manutenção da repressão e das demissões ilegais contra trabalhadores e eliminações autoritárias contra estudantes. Seu “diálogo” é voltado para os setores da própria burocracia universitária descontentes com a gestão Rodas para tentar aplicar da maneira mais hegemônica possível nos órgãos colegiados os cortes orçamentários, o arrocho salarial e as demais políticas de austeridade. Declarar seu alinhamento com a Reitoria que pretende reformular o Estatuto da USP por dentro do Conselho Universitário e sem transformar a podre estrutura de poder da USP, filha legítima da ditadura militar, só pode significar um retrocesso com relação a luta por democracia que se desenvolve dentro da USP.
Diferente da maioria dos demais Institutos e Faculdades da USP nas quais os Diretores são eleitos apenas pelos membros da Congregação da Faculdade (órgão colegiado que possui a presença de 85% de professores, 5% de trabalhadores e 10% de estudantes) e que está submetido à aprovação da Reitoria a partir de uma lista tríplice, a Faculdade de Educação possui um processo de consulta à comunidade acadêmica e um acordo de que a Congregação apenas homologará o nome mais votado (o fim da lista tríplice para Diretor foi institucionalizado em toda a USP esse ano). Ainda que seja progressivo este pleito frente ao cúmulo de anti-democrático que é o processo de escolha e participação dirigente na USP, não podemos deixar de enxergar os enormes limites anti-democráticos que possui essa consulta. Somente professores titulares podem ser candidatos, o que limita o direito democrático de mais de 95% da comunidade da FEUSP se candidatar, prevalecendo a ditadura da minoria de docentes titulares no mando da Universidade; a consulta acadêmica não respeita a conquista democrática constitucional do voto universal (um voto por cabeça) e amplia o peso do voto de cada professor, limando o peso de voto de cada estudante, ao estipular a proporção paritária (33% para cada categoria), fortalecendo o corporativismo e desviando o conteúdo político da concepção de universidade em uma sociedade de classe criando a falsa ideia de que cada categoria é homogênea e que estas possuem interesses antagônicos entre si.
Não fazemos, portanto, campanha para que os estudantes participem desse processo consultivo, pois está evidente a pouca validade representativa que ele possui. Ao mesmo tempo, respeitamos as/os estudantes que desejam participar criticamente desse processo para demarcar sua posição. A estas/es, chamamos a anularem o voto, pois Belmira e Diana Vidal não representam nenhuma postura que avance na luta que os estudantes protagonizaram no ano passado e no sentido da real democratização do acesso e das estruturas de poder da USP.