sexta-feira, 24 de maio de 2013

Apontamentos sobre o debate da chamada “PEC das domésticas”


por Fernanda Montagner, militante da Juventude às Ruas e da LER-QI
O trabalho, aparentemente invisível, de milhares de mulheres domesticas do pais, veio a manchete dos jornais. Isso porque, o governo do PT aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 66), a chamada “PEC das Domésticas”, que amplia as leis trabalhistas a esse setor. Com jornada de trabalho de 44 horas semanais, pagamento de horas extras, licença-maternidade de 120 dias, entre outros. Um avanço no que diz respeito aos direitos trabalhistas mínimos dessas mulheres, mantendo-se entretanto apenas como a possibilidade de equiparação da igualdade de direitos com um trabalhador comum, atrás do qual se esconde o invariável Brasil da precarização da vida e dos acidentes de trabalho. Ao contrario do que o governo quer passar, como uma reparação histórica com a população negra escravizada, e principalmente as mulheres que ainda sofrem com as heranças coloniais, como um avanço para a vidas dessas mulheres, e de um Brasil que avança econômica e socialmente, a verdadeira face da vidas dos brasileiros e brasileiras continua sendo a das mortes por abortos clandestinos, dos acidentes de trabalho, do genocídio da população negra pela polícia.
 A precarização tem rosto de mulher.
 Com o genocídio de mulheres trabalhadoras operado pelas multinacionais, que casos escandalosos como a queda do complexo têxtil em Bangladesh ou os inúmeros incêndios de fábrica na Ásia atestam, até a burguesia internacional está tendo que admitir que a precarização atinge principalmente as mulheres, fato que já denunciávamos há tempos: como são as mulheres que ficam relegadas aos postos mais precários, normalmente cumprindo tarefas externas que são uma extensão das tarefas domésticas, como limpeza e alimentação. Isso legitima o menor salário às mulheres, os assédios, acidentes de trabalho e mortes, porque, numa sociedade machista e com herança patriarcal, essas funções são subvalorizadas.
Esse trabalho doméstico é central para a manutenção da força de trabalho no capitalismo. Contudo, ele fica restrito ao âmbito privado, excluído da reprodução social da vida. A PEC das domésticas, em síntese, avança o debate destas condições de trabalho no marco do enorme atraso que o governo e o Estado brasileiro mantiveram por décadas as empregadas domésticas. Contudo, a regulamentação proposta dos direitos das empregadas domésticas significa, nas mãos do governo Dilma, passar para a formalidade (com igualdade de direitos) um trabalho precarizado. Além de que será uma grande batalha contra o governo para impor a implementação da PEC (já atacada pelos relatores da emenda, como Romero Jucá do PMDB, que querem facilitar a demissão dessas trabalhadoras),não se trata de maneira alguma do reconhecimento do estado em tratar como interesse público o trabalho doméstico. Ainda mantém essas tarefas de reprodução a cargo das mulheres, enquanto que deveria ser tarefa do próprio Estado garantir que os trabalhadores estejam aptos ao trabalho, ou seja, é tarefa deste manter a força de trabalho, construindo lavanderias, creches e restaurantes públicos, funções reprodutivas que hoje é um trabalho não pago às mulheres condenando-as a dupla jornada de trabalho, enquanto que deveria ser um trabalho arcado pelo Estado. A PEC se institucionaliza mantendo sobre as costas das mulheres esses trabalhos embrutecedores.
No Brasil em 2011, havia 6,7 milhões de trabalhadores domésticos, dos quais 93% são mulheres (6,16 milhões), 62% delas são negras (4,4 milhões). Em 2009, o setor de domesticas respondia por 21,8% da ocupação das mulheres negras, ante 12,6% das brancas. Em relação à média de anos de estudo, dados: em 1995, as trabalhadoras domésticas tinham 3,9 anos de estudo; em 2001, 4,9 anos; e em 2009, a média era de 6,1 anos. Essas mulheres trabalhadores têm um peso expressivo na classe operária brasileira, da qual, Dilma tentou desde a sua eleição em 2010 se aproximar com o discurso de primeira mulher presidente, para que as mulheres tivessem a confiança como se um governo da burguesia pudesse avançar nas condições de vida da população, ao invés das trabalhadoras confiarem em si mesmas, junto aos homens, para arrancarem seus direitos. Agora, frente às eleições de 2014, Dilma volta com força com esse discurso usando a PEC das domésticas para atingir em cheio essas mais de 6 milhões de mulheres que nos últimos 3 anos pouco viram avançar as próprias condições de vida, continuam precárias e violentadas.
Os restritos e incertos avanços dessa emenda também servem para revestir de “unidade nacional” do governo com os setores mais precários das mulheres toda uma década petista de entrega dos seus direitos democráticos mais elementares. Há incontáveis exemplos desse modo de operar petista contra as mulheres negras e pobres. A emenda busca ofuscar que sua ascensão eleitoral foi mediada pela barganha do direito ao aborto com a bancada evangélica e católica, condenando milhares de mulheres à morte anualmente. Tampouco fala que essa bancada privilegiada (que possui condições de vida infinitamente superiores à população) e reacionária faz parte da sua base aliada, mantendo um pastor abertamente machista, homofóbico e racista, Feliciano (PSC), que se vale da religião dos fiéis para lucrar corruptamente, para presidir a Comissão de Direitos Humanos e Minorias. Ou mesmo que Dilma, por meio de seus porta-vozes, silenciou a proposta feita pelo Concelho Federal de Medicina, que instava a legalização do aborto até a 12ª semana de gestação, afirmando que não modificaria uma vírgula da legislação do aborto no Brasil durante seu mandato.
O real avanço para as condições das mulheres só pode ser conseguido pela auto organização delas mesmas, arrancando seus direitos por meio de lutas, greves, paralisações, sem confiança nos governos e patrões, se auto-organizando nos locais de trabalho, sindicatos e bairros. É necessário que as mulheres sejam sujeitos de suas próprias lutas, rompendo com a opressão histórica que a sociedade as relega.
 Sobre a suposta reparação histórica a população negra.
O maior contingente de negros fora do continente africano, foi ao longo da formação do estado brasileiro pioneiro da luta de classes se rebelando contra a escravização, a exploração, as condições de miséria e tortura que estavam colocadas. A débil burguesia brasileira sempre esteve pressionada entre a investida da metrópole imperialista e das masas trabalhadoras negras insurretas, tendo assim que usar da constante repressão aos negros, desenvolvendo também armas para submeter pacificamente, como as ideologias de democracia racial e as restritas concessões democráticas, para cooptar e dominar.
As diversas greves que vem estourando nos alicerces estratégicos do “Brasil potência” são um pequeno indício que as bases do projeto de pais lulista começam a trincar. Vemos hoje o que havia por trás do discurso de pleno emprego e ascenso de vida da população com as greves operárias que escancaram as condições animalescas às quais os trabalhadores estão submetidos, precariedade no trabalho, militarização dos canteiros, falta de alimentação, moradia e higiene. Contudo, o governo dá um giro em direitização ao lidar com essas greves “infra-estruturais”: enquanto o PT tenta sair como setor progressista a falar de cotas (medida importante mas insuficiente para radicalizar o acesso ao ensino superior contra o qual luta tanto o governo), esconde a perseguição e repressão ao movimento operário, com trabalhadores espionados, desaparecidos, demitidos e violentados.
A situação é tão escandalosa que até a CUT, central sindical governista, é obrigada a construir um suposto discurso contra a terceirização, mas que visa regulamentá-la: “Para a CUT, qualquer projeto que regulamente a terceirização deve ter como princípios básicos o direito à informação prévia no caso da contratação de uma prestadora de serviços, proibição da prática nas atividades-fim, direitos, salários e benefícios iguais entre terceirizados e contratados direitos e a responsabilidade solidária entre tomadores e prestadores de serviços”. [ver fonte da citação] Ou seja, regulamentar a exploração, e encobre que é essa mesma burocracia que negocia junto ao governo a implantação do Acordo Coletivo Especial, que vai atacar toda a classe trabalhadora revendo até os direitos garantidos pela CLT.
É dentro desse cenário nacional reacionário para o movimento operário, ainda encoberto pelas altas taxas de credito e consumo, que Dilma tenta se antecipar a possíveis enfrentamentos posteriores. A PEC das domesticas entra nesse marco de medidas pré-eleitorais que ofusquem o caráter anti-operário do governo Dilma com uma falsa “unidade” com os trabalhadores mais precários, sem modificar as bases da precarização lulista. Com as greves que vemos estourar em todo o pais, principalmente nesses setores precários e terceirizados, como nos canteiros de Jirau e Belo monte, ou mesmo no desgaste da população negra das favelas frente a violência policial, o governo busca vias de influenciar, num momento importante de sua disputa com o PSDB, principalmente no estado de São Paulo, o setor mais oprimido, as mulheres negras, e com isso faz uma política para aparecer com uma cara democrática.
Nesse sentido, concordando que só a luta pode fazer valer nossos direitos, é problemático ter como eixo central o que defende o PSTU em seu artigo “Trabalhadoras domésticas: luta conquista a lei, mas é preciso ir além!” , “Um primeiro passo é exigir que o Senado incorpore os direitos das trabalhadoras domésticas sem necessitar de regulamentação; algo que os senadores podem fazer, por se tratarem de direitos constitucionais”. Esse sentido enfraquece a organização e a consciência de classe dos trabalhadores para uma saída com independência de classe, entregando a uma instituição reacionária, que serve para a manutenção de poderes entre as distintas oligarquias e que serve para barrar qualquer demanda progressista, a concretização da medida. Além de não desmascarar o governo do PT e todo seu falacioso discurso de “Brasil Potencia”, não ajuda as trabalhadoras a se testarem com as medidas desse governo e perceberem que não há avanço das próprias condições por dentro do parlamento burguês, que tem como função de classe explorar e passar mais ataques a população, juventude e trabalhadores.
 A necessidade transicional do fim do trabalho doméstico
 A desorganização das trabalhadoras domésticas (fruto da dispersão nos domicílios e a prática inexistência de proteção sindical) é um grande obstáculo para a implementação intransigente que devemos defender dos direitos prescritos na PEC. A fiscalização do âmbito doméstico é proibida por lei, pelo que nada garante que haverá qualquer tipo de “controle social” dos acordos “patrão-empregada”. A organização dessas trabalhadoras por sindicatos (e sua auto-organização por bairros e regiões) é imprescindível para reverter a pouca correlação como classe para impor seus direitos elementares dentro das residências particulares, contra a manutenção do regime de “Casa Grande” pela “patronal” doméstica. Essas dificuldades na implementação da PEC recebem “vistas grossas” pelo governo Dilma, especialista na divisão das fileiras operárias, entre efetivos, terceirizados, homens mulheres, brancos negros, para assim enfraquecer e fragmentar as lutas. Por isso deve ser uma demanda central a unidade das fileiras operarias, contra todos os tipos de divisões que o capitalismo tenta impor.
O combate pelos direitos dessas trabalhadoras, que não está garantido apesar de sua expressão na emenda, não nos permite ter nenhuma ilusão num suposto relato de “segunda abolição” da escravidão. Este projeto abriu um importante debate em setores da intelectualidade, como o sociólogo Ricardo Antunes da Unicamp, sobre toda a formação racista da sociedade brasileira, que devem ser aprofundadas pois remetem à verdadeira compreensão da instituição do Estado brasileiro contra as revoltas e manifestação do povo negro que sempre ameaçam as bases da dominação de uma burguesia herdeira de “Anhangueras” e bandeirantes escravistas. Como aponta corretamente Antunes, “Nossa origem escravista e patriarcal, concebida a partir da casa grande e da senzala, soube amoldar-se ao avanço das cidades. A modernização conservadora deu longevidade ao servilismo da casa grande para as famílias citadinas [...] Como o assalariamento industrial excluiu a força de trabalho negra das fábricas (preterida em favor dos imigrantes brancos), formou-se um bolsão excedente de trabalho ex-escravo que encontrou acolhida no trabalho doméstico. E, como um prolongamento da família senhorial, manteve-se as vantagens da era serviçal.”, adicionando a crítica a precarização do trabalho. O “desespero” da direita em ligar a luta por melhores condições de trabalho a uma demissão certa é parte deste ranço ideológico reacionário de uma patronal que tem o latifúndio e a senzala em seu DNA de classe. Justamente pela PEC não garantir por si só a implementação dos direitos, é preciso remarcar que não está descartado que haja “outros acordos” entre “patrão-empregado” para manter a empregada sem os direitos como “condição” para seguir no emprego. Essa pressão do governo para não aplicar a lei, acima de qualquer discurso de “segunda abolição”, deve nos impulsionar a defender a necessidade dos Sindicatos organizarem as empregadas domésticas para medidas coletivas de garantia da implementação do emprego para que o acordo não se restrinja à relação “patrão-empregada”. Que todos os direitos sejam estendidos às diaristas e que sejam garantidas creches integrais para as trabalhadoras domésticas perto de suas casas ou locais de trabalho, como primeiras medidas para avançar numa importante abolição: a do trabalho doméstico.
 Exemplo histórico
Assim, reivindicamos os fios de continuidade daqueles que mais conseguiram avançar na emancipação da mulher, mais do que qualquer democracia burguesa decadente dos nossos tempos. O Partido Bolchevique, após a revolução Russa, teve como uma das hierarquias, no marco de construir uma nova sociedade livre da opressão, emancipar as mulheres. E como isso necessariamente passa por livra-las do trabalho domestico, e inseri-las na produção social da vida, foram construídas creches, lavanderias, restaurantes públicos, para que fosse um encargo social a reprodução da vida, e liberando assim as mulheres para criarem e produzirem riqueza social, para poderem serem sujeitos ativos na politica, artes e nos rumos da sociedade. Ou seja, assim equiparando materialmente as mulheres aos homens.
Como expressa Wendy Goldman no seu livro ” A mulher o Estado e a Revolução”: “Kollontai também argumentava que sob o socialismo todas as tarefas domésticas seriam eliminadas e o consumo deixaria de ser individual e interno de cada família. A cozinha privada seria substituída pela pública. A costura, a limpeza e a lavanderia, igualmente a produção mineira, metalúrgica e de maquinarias, se transformaria em ramos da economia d povo. [...] Os bolcheviques buscavam transferir o trabalho domestico as esferas publicas. [...] A socialização do trabalho domestico eliminaria a dependência da mulher sobre os homens e promoveria uma nova liberdade nas relações entre os sexos. Trotsky declaro que em quanto as roupas fossem limpas por uma lavanderia pública, alimentação por um restaurante publico, a costura por uma oficina publica, o laço entre o homem e a mulher seria liberado de todo o fator externo e acidental. Se desenvolveriam relações novas, obrigatórias para ninguém, sobra bases de sentimentos mútuos.” (Goldman, W. pg31)
Devemos, desde hoje, no combate contra a opressão e a exploração, lutar pelo fim da dupla jornada de trabalho, defendendo emprego pleno para todas as mulheres que hoje cumprem um serviço que deveria ser feito pelo estado, condições dignas de vida, lutando pela unidade das fileiras operarias, contra as divisão imposta pelos patrões e governos, que enfraquece a luta das mulheres na medida que mantem cada uma delas trabalhando em casas, isoladas socialmente, ofuscando a consciência de classes dessas trabalhadoras. Pela unidade da classe trabalhadora contra a precarização e a opressão!

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