segunda-feira, 28 de maio de 2012

Reflexões iniciais sobre a emancipação da mulher: liberdade sexual e Revolução Russa

por Iaci Maria, estudante de pedagogia da Unicamp, e 
Milena Bagetti, estudante de pós graduação em ciência de alimentos pela Unicamp

É um fato curioso que a cada grande movimento revolucionário vem à tona a questão do ‘amor livre’.” (F. Engels, 1883)

A livre expressão da sexualidade, assim como o “amor livre”, são temas que têm sido debatidos ao longo de séculos e, a cada novo processo revolucionário tanto esses temas quanto questões sobre os direitos das mulheres saltam a primeiro plano. Mas afinal, o que representa essa discussão, tanto hoje, frente a uma crise mundial, processos revolucionários e grandes mobilizações que vem se estendendo pelo mundo inteiro, como nos períodos revolucionários abertos ao longo da história, como a Revolução Russa de 1917? Retomarmos os avanços para as mulheres conquistados a partir da instauração de um Estado Operário na Rússia vem da necessidade de tirarmos as lições do que representou aquele período, tudo que foi conquistado ali, e o porquê aqueles avanços só foram possíveis depois da Revolução, a partir de um período de transição ao socialismo, e quais os erros que levaram às derrotas nesse processo.
Expressar livremente tanto o amor como a sexualidade é poder expressar sem opressões e repressões o seu desejo, é tomar as decisões sobre o próprio corpo, se permitindo sentir prazer saudavelmente, conforme a vontade. A sexualidade só será realmente livre quando houver de fato a compreensão e as condições objetivas e subjetivas para que o amor seja livre, ou seja, quando homens e mulheres forem livres para se apaixonar por várias pessoas, e consigam exercer essas paixões.
Na sociedade capitalista existe uma falácia sobre a independência da mulher, social, financeira e sexual. Com o surgimento de vários métodos contraceptivos e após os movimentos feministas das décadas de 1960-70, difundiu-se a crença de que a juventude pode exercer livremente sua sexualidade. O elemento não levado em conta, entretanto, é que este livre exercício se aplica muito mais aos homens, dada a ideologia imposta pela classe dominante de que as mulheres não devem ter relações sexuais por fora de um relacionamento estável, monogâmico. Além disso, se faz ainda a conservadora separação entre a mulher que é “para casar” e a que é “para se divertir”, denotando a recusa de que a mulher tenha o direito de exercer livremente sua sexualidade. Este livre exercício é ainda muito mais restrito para as camadas mais pobres, não só pelo reduzido acesso à contracepção e à educação sexual, mas também pela disciplinarização da força de trabalho, como aponta Gramsci em “Americanismo e Fordismo”. Tal disciplinarização é voltada para os propósitos de acumulação do capital, criando elementos, tais como cooptação, familiarização, repressão e coerção, que contribuem para uma ideologia em que corpos disciplinados para o trabalho são mais produtivos. Sendo assim, o livre exercício da sexualidade se apresenta contraposto ao modelo de trabalhador puritano. E na atualidade, mesmo com novos modos de organização da produção capitalista, esta ideologia ainda é atual e se expressa em formas cada vez mais intensas de exploração do trabalho, como se observa na terceirização, no trabalho precário da limpeza, no telemarketing de jornadas exaustivas e em outros setores, em sua maioria, realizados por mulheres.
É essa mesma ideologia dominante que atua no parlamento brasileiro, mantendo a criminalização do aborto, outro meio de impedir o livre desenvolvimento sexual das mulheres. Por isso a luta pela legalização do aborto deve ser travada enquanto uma luta pelo direito da mulher de decidir pelo próprio corpo, uma luta para se livrar de uma de suas amarras sexuais.

A ideologia atualmente dominante em nada é recente!

(Foto: cartaz norte-americano de 1950, "American way of life")
Engels, em sua obra “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado” (1884), assinala o início da família monogâmica na Grécia antiga juntamente com o surgimento da propriedade privada, simplesmente para que o homem pudesse ter certeza de que o filho era seu, e assim passar sua herança. Surge assim também a primeira forma de opressão de classe:

Essa foi a origem da monogamia, tal como pudemos observá-la no povo mais culto e desenvolvido da antiguidade. De modo algum foi fruto do amor sexual individual, com o qual nada tinha em comum, já que os casamentos, antes como agora, permaneceram casamentos de conveniência. Foi a primeira forma de família que não se baseava em condições naturais, mas econômicas, e concretamente no triunfo da propriedade privada sobre a propriedade comum primitiva, originada espontaneamente. Os gregos proclamavam abertamente que os únicos objetivos da monogamia eram a preponderância do homem na família e a procriação de filhos que só pudessem ser seus para herdar dele. (...) Num velho manuscrito inédito, redigido em 1846 por Marx e por mim, encontro a seguinte frase: "A primeira divisão do trabalho é a que se fez entre o homem e a mulher para a procriação de  filhos”. Hoje posso acrescentar: o primeiro antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher, na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opressão do sexo feminino pelo masculino.” (F. Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado)

O capitalismo se apropriou dessa família e dessa opressão para garantir seus lucros, não somente pela questão da herança, mas também ao manter a mulher como responsável pelos trabalhos domésticos, sem receber nada por isso, trabalho esse que garante ao seu companheiro a comida pronta, casa limpa e roupa lavada, condições necessárias para que ele continue trabalhando e produzindo para seu patrão. Para além desses fatores de herança e trabalho doméstico a mulher é também oprimida pelo papel vital de reprodutora, que deve cumprir dentro do núcleo familiar, sendo seu corpo visto apenas para essa finalidade: a reprodução da vida e do trabalho. Ou seja, a opressão familiar, para que se faça material e siga garantindo a perpetuação do capitalismo, deve ser ideológica, e é a ideologia burguesa dominante que, junto a uma moral religiosa, impõe um conservadorismo à sociedade que impede a juventude – e, principalmente, as mulheres – de exercerem sua sexualidade livremente, derivando daí a idéia romântica de “amor único”, e da necessidade de se ter um relacionamento monogâmico estável e, a partir dele, constituir uma família idealizada para a realização desse amor, sendo esse “amor” sustentado no cotidiano e fundamentado na culpa quando da atração por outra pessoa, o que gera conflitos internos e a repressão e o recalque de desejos sexuais.
A liberdade sexual das mulheres não poderá ser alcançada enquanto houver propriedade privada, por dentro de um sistema que se utiliza de sua opressão para sobreviver e seguir lucrando. Ela não virá dentro dos marcos do capitalismo, e essa é uma lição que a história nos ensina ao notarmos que no período pós-revolucionário da Rússia as primeiras conquistas foram a respeito dos direitos e liberdades das mulheres.

Os avanços do período pós Revolucionário da Rússia, e as derrotas geradas pela falta da Revolução Mundial
Os bolcheviques defendiam que somente no socialismo teria fim a opressão da mulher, quando o trabalho doméstico fosse transferido para a esfera pública. No livro “La mujer, el Estado y la revolución”, a historiadora norte-americana Wendy Z. Goldman resgata as políticas familiares e a vida social na Rússia (e, depois, na URSS) entre 1917 e 1936. Goldman aponta como as políticas públicas livrariam as mulheres do trabalho doméstico e isso, gradativamente, aboliria a família, emancipando-as. Frente a isso, as uniões entre os sexos se dariam apenas a partir do afeto e respeito mútuo, ou seja, uniões baseadas no chamado “amor livre”. Alguns teóricos soviéticos, como Alexandra Kollontai, defenderam amplamente a liberdade sexual, como a expressão de um desejo natural; enquanto outros demonstraram certa preocupação quanto às consequências dessa sexualidade livre.
Apesar do avanço que significou discutir e defender a liberdade sexual naquele momento, a preocupação desses teóricos e dirigentes, entre eles Lênin [*], era de certa forma coerente se pensarmos que em 1918 não haviam métodos contraceptivos. Portanto, já nessa época, a liberdade sexual era a liberdade sexual do homem! Para que houvesse liberdade sexual para a mulher, eram necessárias condições materiais para sua garantia, e a questão dos filhos era uma das maiores preocupações. Logo nos primeiros anos após a Revolução de 1917, discutiu-se que o Estado passaria gradativamente a ser responsável pela criação das crianças, tirando essa tarefa do âmbito familiar. Outras condições materiais – creches, restaurantes e lavanderias comunitárias – também foram garantidas, livrando as mulheres da dupla jornada de trabalho, além de garantias na lei, que Wendy Goldman exemplifica em seu livro, como o direito ao divórcio, que permitia à mulher se livrar de um matrimônio indesejado; a questão das pensões alimentícias, as quais os juízes sempre favoreciam as mulheres sem julgar sua vida sexual, com quantos homens teve relação; e também as leis trabalhistas que favoreciam as mulheres, como a proibição do trabalho noturno para mulheres.
Todos os avanços que a Rússia construiu nesse período pós-revolucionário foram retrocedidos. Por ser um país majoritariamente camponês que acabava de sair de uma Guerra Civil e, naquele momento, era o único Estado Operário em meio a um mundo Capitalista, sua economia estava arruinada. A solução encontrada pelos dirigentes do Partido foi a implementação da Nova Política Econômica (NEP), o que se mostrou uma política necessária para o Estado, mas acabou representando uma derrota para as mulheres, como Wendy Goldman demonstra em seu livro ao minuciosamente se dedicar aos dados a respeito dos restaurantes, creches, lavanderias e lares para crianças que fecharam, e como as mulheres foram as primeiras e principais afetadas pelo desemprego, mesmo tendo a seu favor leis que deveriam lhes garantir seus postos de trabalho. Retrocessos subjetivos também ocorreram, como o retorno à família enquanto pilar social e, mesmo sendo legalizado o divórcio, as mulheres mais pobres e trabalhadoras não possuíam de fato esse direito, já que eram novamente dependentes financeiras de seus maridos, devido ao alto índice de desemprego feminino. Frente a essas perdas, volta com toda força a prostituição, onde a venda de seu próprio corpo representa o sofrimento por conseguir um pedaço de pão.
(Foto: cartaz soviético do período stalinista no qual se lê:
"Tudo sabemos fazer por nós mesmos. Ajudamos a nossa mãe!")
O que Wendy Goldman não mostra no seu livro é a raiz de todo o problema, que começa com a concepção de “socialismo em um só país”, concepção essa que os próprios retrocessos nas conquistas da Revolução mostram que não é possível. Todas as derrotas que foram se dando na Rússia vieram do isolamento político e econômico que aquele país se encontrava, principalmente depois da derrota da tão esperada Revolução Alemã. Todos esses exemplos de derrotas para as mulheres, depois de uma série de vitórias, vêm para comprovar toda a luta política que Trotsky deu contra Stálin e Bukharin – que defendiam a mencionada teoria do “socialismo em um só país” – dentro da III Internacional, na defesa do Internacionalismo, e da impossibilidade do triunfo do comunismo em um só país.

Havia duas teses fundamentais na teoria da revolução permanente. Primeiro, que apesar do atraso histórico da Rússia, a revolução pode colocar o poder nas mãos do proletariado russo antes de o proletariado de países avançados conseguirem isso. Segundo, que a saída para as contradições que acontecerão com a ditadura do proletariado em um país atrasado, cercado de um mundo de inimigos capitalistas, será encontrada na arena da revolução mundial. A primeira proposição é baseada num correto entendimento da lei do desenvolvimento desigual. A segunda depende de um correto entendimento da indissolubilidade dos laços econômicos e políticos entre países capitalista.” (L. Trotsky, Stálin, o Grande Organizador de Derrotas)

As experiências da Revolução Russa nos mostram de modo mais completo que as grandes reflexões ideológicas para o avanço da subjetividade humana, para que possibilitem a emancipação integral da mulher, devem encontrar na realidade objetiva - em especial nas condições materiais - as bases para essa discussão, mas também que não basta apenas a revolução socialista para se por fim às opressões. A emancipação feminina só se dará quando o machismo e a opressão estiverem totalmente abolidos da consciência da população, de todos os trabalhadores, e para isso há a necessidade de um período transicional entre o capitalismo e o comunismo para que não só as transformações sociais, políticas e econômicas sejam implementadas, como também para que essa subjetividade humana ache meios para avançar através das discussões a respeito, e assim as consciências alcancem de fato um ponto onde opressões como o machismo estarão suprimidas. A revolução socialista, a estratégia da revolução internacional e o período de transição ganham uma importância decisiva e estão completamente relacionados à superação desses males, das opressões físicas e psicológicas e da repressão da sexualidade feminina.

A mulher, a sexualidade, e os desafios contemporâneos
Hoje, em meio ao Imperialismo, tudo isso que consideramos derrotas para as mulheres não passa do que é considerado natural, dentro da moral e ideologia dominantes. A livre expressão de sua sexualidade é um tabu discutido entre algumas minorias, grupos específicos que se voltam para discutir questões de gênero ou questões LGBT. A própria esquerda se furta de aprofundar esse debate, pois está também adaptada a essa moral religiosa e à ideologia burguesa, tão intrínsecas a sociedade contemporânea. Mesmo as que são consideradas conquistas legais, são no limite apenas formalidades, pois a igualdade entre homens e mulheres garantida na Constituição não é uma igualdade real quando a opressão, a dupla jornada de trabalho, e o moralismo burguês seguem atando as mulheres ao seu papel de mãe, esposa, dona de casa, mesmo quando ela trabalha fora.
O que queremos aqui é aprofundar a discussão sobre a liberdade sexual das mulheres e de toda juventude em meio à miséria sexual proporcionada pelo capitalismo, e mostrar como as mulheres devem se alçar enquanto sujeito de sua própria história, lutando pelo rompimento das estruturas que sustentam o capitalismo e sua miséria sexual. Essa luta feminista só se fará possível se estiver colada a uma estratégia revolucionária e ao marxismo, pois apenas através da formação de mulheres dirigentes dentro de um partido leninista, dadas as condições concretas de um processo revolucionário – com todas as dificuldades que este tem, como mostramos acima através dos estudos de Wendy Goldman – poderá ser impulsionado um Estado onde o trabalho doméstico deixe de estar fechado no âmbito privado e passe a ser da esfera pública, liberando a mulher para a participação pública, social e política, onde elas possam travar um duro combate contra o machismo e a opressão, essas velharias ideológicas que se fazem materiais em nossa sociedade, e devem ser destruídas. É tarefa fundamental dos revolucionários ter sempre em mente que a real emancipação da mulher só se dará junto ao desenvolvimento do comunismo, quando for abolida a propriedade privada, a igreja e a família, entidades que são, por excelência, opressoras das mulheres.


[*] Lênin, um dos grandes dirigentes da Revolução Russa, expressa sua preocupação com o excesso de atenção dado às questões sobre a sexualidade e o casamento, inclusive de maneira conservadora em alguns pontos, em um diálogo que teve com Clara Zetkin em 1920, uma das fundadoras do Partido Comunista da Alemanha. “Desconfio daqueles que estão absorvidos constante e obstinadamente com as questões do sexo, como o faquir hindu com a contemplação do próprio umbigo.”, diz o revolucionário ao defender que, em meio à eminência da Revolução Alemã, essas questões não deveriam ter prioridade. (http://www.marxists.org/portugues/zetkin/1920/mes/lenin.htm)

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