segunda-feira, 1 de setembro de 2014

O Maio de ’68 e as tendências da juventude: como voltar a desafiar o poder?


por Fernanda Montagner


“Aqueles que fazem revoluções pela metade cavam uma cova”, frase do maio de ’68

“Estudantes em apoio aos trabalhadores de Lear”, esta frase esteve estampada pela manha desta quarta-feira (27/08) nos jornais da Argentina. Mais do que uma frase de impacto para a mídia, essa frase consegue expressar o que há de mais profundo nas experiências históricas de luta dos estudantes.

Com muita originalidade, os estudantes da UBA (Universidade de Buenos Aires) fizeram mais uma ação de solidariedade e luta pela reincorporarão dos trabalhadores demitidos da empresa Lear, parando uma das principais rodovias da Zona Norte de Buenos Aires, a Panamericana, no quilômetro que fica em frente a empresa. Desde o início da luta, a policia vem tentando impedir ações dos estudantes e trabalhadores, chegando em momentos a prender trabalhadores e reprimir as manifestações Estes estudantes junto aos trabalhadores vêm de forma cada vez mais original resistindo e burlando a tentativa do governo de calar essa luta. Chegaram a por em marcha as “caravanas solidárias”, paralisando com uma frota de veículos o trânsito, deixando a polícia impotente para impedir o engarrafamento. Em novo exemplo, desta vez vieram em ônibus escolares insuspeitos, parando de supetão na via e iniciando o ato. O interessante foi que em mais uma tentativa de repressão policial (dando 10 minutos para que saíssem da via, mesmo com os estudantes e trabalhadores propondo deixar 2 vias abertas para os carros), a policia teve que engolir seco suas ameaças e recuar, não porque ela tenha refletido ou diminuído sua truculência, mas porque a atuação organizada dos estudantes levantando demandas populares (“Famílias na rua, nunca mais!”, dialogando com as demissões em todo o país), num momento onde o governo argentino se vê fragilizado em meio a pressão das empresas imperialistas por um lado.

Essa foi mais uma ação no conjunto de muitas outras que mostram que os estudantes podem cumprir um papel fundamental de ser um sujeito que pauta as discussões nacionais, ao passo que se unifiquem e levantem as demandas populares e dos trabalhadores.

Se os “de cima” nos forçam a ignorância, nós pelo contrário queremos reeditar a história daqueles que ousaram desafiar o poder.

As classes dominantes fazem questão de apagar da história, ou mesmo suavizar os fatos segundos seus interesses, para que não existam novos “escravos insurretos que se apoderando da história, utilizando-a como arma”. Nessa lógica transformaram o marxismo num método de análise estética, e grandes acontecimentos que questionaram o regime de dominação de classes, como o Maio francês de 1968, quase um romance de jovens que queriam mais amor e paz. Estes eventos na Argentina nos movem a tentar recuperar “conteúdo e métodos” com os quais a juventude foi protagonista destes grandes acontecimentos, querendo reeditar alguns aspectos desta experiência de ’68 que mostram como os estudantes e trabalhadores juntos puderam desafiar o poder (considerando com cuidado a analogia, já que a etapa de processos revolucionários aberta em ’68 não tem paralelo hoje, e a politização e radicalização à esquerda de setores estudantis citados no exemplo argentino se liga a uma clara estratégia revolucionária, como em boa parte inexistia na França).

Passadas duas décadas após o final da Segunda Guerra o movimento desatado em ‘68 foi capaz de questionar a ordem estabelecida após os acordos de Yalta e Potsdam. Essa força passa pela unidade entre trabalhadores e estudantes no sentido de estes últimos entenderem a necessidade de se ligarem aos trabalhadores como sujeitos capazes de fazer a revolução, levantando as demandas operárias e populares. E os trabalhadores verem que para lutarem contra a exploração do trabalho é necessário se ligar aos setores populares.

Essa ligação foi fundamental na época, e continua sendo hoje. Um segundo ponto fundamental era, e continua sendo hoje, forjar um movimento estudantil que rompa o corporativismo e seja um ator nacional. Em ‘68 os estudantes foram os precursores das grandes ondas de greve que se desenrolaram, porque conseguiram expressar boa parte dos descontentamentos populares que haviam nas camadas populares da época, e elevando a um patamar político: a luta anti imperialista com o rechaço ao Estados Unidos na guerra do Vietnam (contemporâneo a isso ocorria no Oriente Médio a Guerra dos Seis Dias, em que os países árabes se voltaram contra o estado colonialista de Israel); o questionamento ao aparato contrarrevolucionário stalinista (que buscava enterrar processos revolucionários na França e em todo o mundo) e por fim um questionamento mais amplo do capitalismo como sistema em putrefação.


“Por um lado o Maio Francês se baseava na ‘critica artística’ e em uma ‘critica social’ do capitalismo, quer dizer em uma crítica à alienação e ao fetichismo que gera o sistema de exploração capitalista tanto como uma crítica às injustiças sociais e às desigualdades profundas nas quais se baseia o mesmo sistema [...] o maio francês estava vinculado a um tripé de questionamento: um questionamento aos mecanismos de exploração capitalista partindo da ordem fabril; um questionamento da sangrenta dominação imperialista começando por uma oposição ao intervencionismo norteamericano no Vietnã; um questionamento dos agentes da burguesia no seio do movimento operário que advogavam a favor do reformismo e da conciliação de classes, começando pelo aparato stalinista” (p. 38)


Esses três pontos levantavam boa parte de demandas populares (devido ao primeiro ascenso operário do pós-Segunda Guerra), que tocava também o questionamento da Universidade, com a histórica consigna “questionando a universidade de classes para questionar a sociedade de classes”, o movimento estudantil organizado conseguiu a partir dos seus métodos despertar a sociedade e causar uma crise política. Esse processo nos deixou importantes lições como a necessidade de um movimento estudantil ligado aos trabalhadores e que levante as demandas de toda a população. Contudo, ocorria numa época em que as revoluções ainda eram vivas no imaginário[1], em que a idéia de comunismo ainda era presente (ainda que deformada pela noção de que a URSS “vivia o comunismo”), e a luta anti burocrática clara para combater o enorme aparato stalinista, que atuou durante todo o processo para dividir os estudantes dos trabalhadores (e que já vinha de um desgaste com a repressão duríssima a revolução Húngara e a coexistência pacifica com o imperialismo). Mesmo depois desta grande energia por parte da juventude e dos trabalhadores, sem uma organização revolucionária que reunisse essas forças no caminho de uma estratégia pela tomada do poder, este levante acabou sendo traído e derrotado. Sem entrar nas polêmicas e/ou debilidades do processo, hoje vivemos outro momento histórico, onde queremos resgatar os melhores fios de continuidade dessa luta, assimilando seus acertos e superando esta experiência.

O novo despertar da juventude

Se atualmente o comunismo não é presente na mente da pessoas, vivemos desde 2010 um estourar de movimentos de juventude pelo mundo que se assemelharam, no sentido da extensão, ao maio de ‘68 francês (quanto ao conteúdo, assemelha-se mais ao movimento “no-global” inaugurado em 1999 em Seattle, em oposição ao capital financeiro e banhado na ideologia autonomista, do que ao maio francês). Estes movimentos foram inspirados no impulso da chamada “primavera árabe” de 2011, que do ponto de vista da luta de classes poderíamos considerar como o “fim de ciclo” da recuperação capitalista depois da derrota dos processos de 1968. E novamente quem esta prenunciando e expressando os descontentamentos populares é a juventude, nos movimentos YoSoy132 (México), Ocuppy Wall Street (EUA), 15M (Espanha), estudantes chilenos e junho no Brasil. Esses movimentos, para além de suas distinções, carregam todos as pressões de mais de 30 anos de democracia burguesa e ofensiva neoliberal, fruto da derrota das maiores conquistas dos trabalhadores como a queda da URSS, e da campanha do imperialismo “triunfante” acerca da centralidade do indivíduo em contraposição ao social (demonizando as organizações e partidos de esquerda como “filhos do totalitarismo”, e reservando os instintos de organização para os partidos tradicionais do regime burguês), em que se decretava o suposto fim da classe operária e da organização do movimento operário e estudantil para a luta de classes – o que se projetou na esfera ideológica, com o protagonismo das ideias autonomistas (absolutamente incapazes de responder aos desafios da crise, como no Estado espanhol, na Grécia e inúmeros exemplos).

É desta tradição “produto da derrota” que devemos livrar a mentalidade da juventude. Os exemplos que vimos essa semana do movimento estudantil na Argentina tem muito da atuação do PTS (Partido dos Trabalhadores Socialistas, organização irmã da LER-QI na Argentina) dentro das entidades estudantis, buscando forjar uma nova concepção de entidades. Este último ponto é fundamental para pensar a organização da juventude atualmente, ligado aos dois pontos retomados de ’68: a necessidade de tomar as entidades para que sejam instrumentos democráticos e de luta dos estudantes. Na Argentina, viemos organizando ações desde assembleias estudantis para organizar os estudantes a se solidarizarem com o conflito das demissões de Lear e Donnelley, como na luta por colocar o conhecimento da Universidade a serviço dos trabalhadores, mostrar solidariedade ativa organizando os estudantes de diversos cursos para colocar seu conhecimento a serviço de uma das principais lutas do país, a ocupação de Donnelley.

De maio a junho

Esses exemplos fazem parte de uma nova concepção de atuação nas entidades e de organização da juventude. No Brasil após Junho um dos principais balanços foi a falta de organização dos que saiam as ruas, e a separação da concepção autonomista de qualquer intervenção em comum na luta de classes dos trabalhadores (em que os organismos aparecidos em junho auxiliaram as grandes greves nacionais, para citar duas, dos metroviários de SP, e das universidades estaduais paulistas, levantando novamente junto aos trabalhadores as demandas da educação e do transporte público?). Os instrumentos de organização como entidades estudantis, estão ou nas mãos de direções governistas, ou da esquerda reformista/centrista, que não consegue cumprir um papel que fuja a luta de script, ou seja, alguns movimentos que se adaptam ao regime universitário se restringindo a demandas no marco corporativista, educando um movimento estudantil passivo e rotineiro que não busca ser sujeito político que pauta as grandes questões nacionais, que junto as trabalhadores seja um empecilho para as políticas dos governos (os aparatos “autonomistas” não estão por fora desta lógica burocrática e reformista da política, basta ver o MPL, que se negou a participar das mobilizações dos metroviários, e dirigia-se a público em junho de 2013 dizendo representar pessoas que nunca os tinham eleito ou mandatado). Essa concepção que em ultima instância visa as eleições, ou seja, uma esquerda que se guia a ganhar aparatos, espaços dentro do regime e onde cada vez mais são pressionadas pelos limites da democracia burguesa, mostrou sua impotência para atuar em Junho, e mesmo no maio operário vimos que o movimento estudantil não conseguiu de conjunto ser um aliado estratégico dos trabalhadores em luta.

Dentro dessa greve das três principais Universidades do estado de São Paulo, que já dura quase 100 dias, a principal entidade que organizou estudantes desde comandos e assembleias de base a se solidarizar e a atuar junto aos trabalhadores foi o Centro Acadêmico de Ciências Humanas (CACH), de cuja direção a Juventude Às Ruas faz parte junto a estudantes independentes. Infelizmente outras entidades importantes como DCE da USP e UNICAMP pouco fizeram além de notas e do rotineirismo de sempre, sem organizar ampla solidariedade ativa entre os estudantes.

O CACH vem atuando junto aos trabalhadores, organizando ônibus para os atos, como o do dia 14/08; organizou debates como o repúdio ao título referendado pelo Conselho Universitário da Unicamp ao ministro da Educação da ditadura, Jarbas Passarinho, no sentido de combater a reitoria e emergir como um setor do movimento estudantil que quer discutir e atuar frente as grandes questões, usar da entidade como uma contra política à ideologia da reitoria, disputar o conhecimento produzido na Universidade para colocá-lo a serviço dos trabalhadores e da população, espelhando-se no “conteúdo e métodos” de maio de ’68.

Por trás destes exemplos existe a concretização da atividade de uma entidade militante.ara responder as demandas de junho da crise de representatividade que se abriu, a necessidade de resgatar os métodos democráticos de base, lutando por entidades proporcionais nos centros estudantis é fundamental nesse momento onde a juventude no Brasil precisa se testar na pratica com as diversas concepções de direção que e existem e a partir disso tirar suas próprias lições. Nesse sentido que atuamos, para fazer um movimento estudantil democrático que levante as questões mais sentidas da sociedade como acesso radical, onde todos os trabalhadores, os negros possam estar na Universidade, onde seu conhecimento esteja a serviço da população. A classe dominante deve novamente sentir que sob seus pés a terra treme.

[1] A União Soviética, ainda que enfraquecida e monstruosamente deformada pelo stalinismo, permanecia de pé como uma grande conquista social do proletariado mundial; as revoluções chinesa e cubana seguiam-se, respectivamente, em 1949 e 1959, mesmo que dirigidas por setores da pequena burguesia e do stalinismo que bloqueavam o caráter internacional destes processos.

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