Por Fernando Pardal
Ontem a
greve da USP completou cem dias.[1] Cem dias
de uma luta heroica, contra a polícia, o governo e a mídia. Uma luta que começa
motivada por um arrocho salarial, ou seja, um ataque às condições de trabalho
na universidade, mas que em seu decorrer transcendeu em muito essa luta,
mostrando que o arrocho salarial era apenas a ponta do iceberg. O ataque à
universidade, por mais que ela seja hoje uma ilha de elitismo, é um ataque à
população de conjunto, pois essas "reformas" irão elitizá-la cada vez
mais e tirar o que ela ainda tem de público, como o atendimento no Hospital
Universitário, que a reitoria pretende desvincular da universidade para, logo,
passar às mãos de alguma empresa privada disfarçada de OS (organização social).
Para
continuar a luta, os trabalhadores da USP e das estaduais paulistas fizeram um
enorme ato, que foi até a porta da reunião de negociação com o Cruesp (Conselho
dos Reitores das Universidades Estaduais Paulistas) cantar a plenos pulmões
aquilo que se tornou o lema dessa greve, tomado dos garis do Rio: Não tem
arrego!
Mas esse
texto não é sobre nada disso. É sobre algo que acontecia paralelamente, enquanto
essa luta ocorre. É sobre um cadáver encontrado ao lado do bloco F do Crusp,
virando logo uma "fofoca do dia" na universidade. Ou, mais
precisamente, sobre a pessoa que se tornou, naquela madrugada fria, um cadáver
que ficou ali estendido, por horas, tomando chuva, até que fosse encontrado.
A pessoa
por trás desse corpo era João. Eu nunca conversei com ele, mas sempre o via por
aí. As últimas vezes que em que o encontrei foi no acampamento que os
trabalhadores da USP ergueram diante da imponente reitoria da universidade,
como um marco de sua luta. João aparecia lá. A história dele eu não sabia. Como
todo mundo que anda pela USP sabe, ali é um lugar em que circula uma grande
quantidade de "loucos": Gautiê, Piauí, João...
Eles são
gente que não tem lugar nessa sociedade. Não vendem seu trabalho, não geram
mais-valia e, portanto, nessa sociedade não têm valor algum. São jogados à rua,
jogados à sua própria sorte. São olhados de canto, com medo, pelas
"pessoas de bem". Ficam na USP porque sabem que ali é, de certa
forma, um lugar um pouco menos hostil, que ali existem muitos trabalhadores e
estudantes que repudiam a presença da polícia, que para eles sempre representa
um perigo. Que ali, muitas vezes encontrarão alguém disposto a conversar, a
ceder uma bebida, uma ponta de um baseado, alguma coisa que os lembre que eles
também são gente, como os outros.
Essas
pessoas não nasceram na condição de párias sociais. É esse mundo, de um jeito
ou de outro, que os joga, pelas piores formas possíveis, nessa situação. Nossa
sociedade fecha os olhos para isso, finge que não é com ela. É o
"liberalismo aplicado à vida": cada um cuida do seu, e foda-se os
problemas do vizinho. João é mais um destes, que não nasceu como um sujeito
maltrapilho que andava pela USP. Eu não sei quase nada da sua vida. Mas sei que
ele foi um professor da rede pública de ensino do estado de São Paulo, e que,
como muitos outros, foi perseguido por lutar em defesa da educação pública. Na
histórica greve de 2000, o governo de Mario Covas do PSDB, muitíssimo bem
auxiliado pela burocracia sindical do PT que dirige o sindicato dos
professores, conseguiu consolidar a correlação de forças que até hoje persiste
nessa categoria: o governo os massacra, impõe novos ataques a cada dia,
precariza impiedosamente todas as suas condições de trabalho.
Nenhuma
categoria de trabalhadores é derrotada sem resistência. E os professores, hoje
uma categoria que é marcada por muitas derrotas, resistiram bravamente. Essa
resistência foi feita, como hoje a luta da USP, contra a polícia, o governo, a
mídia. E tinham ainda um outro obstáculo, que era seu próprio sindicato. Os
protagonistas dessa luta foram milhares de homens e mulheres que estavam - ao
contrário dos diretores do sindicato - sofrendo a cada dia nas salas de aula a
precarização de seu trabalho. Entre eles estava João. Para que o governo
vencesse, ele precisou derrotar essas pessoas. E na greve de 2000 vieram muitas
demissões. Caçaram a aposentadoria de Tonhão, um lutador que conheci também nas
greves da USP, nas quais participa levando seu apoio. Exoneraram João.
O que
aconteceu com João depois disso? Eu não sei. Não era seu amigo, nunca conversei
com ele. Mas sei do que esse mundo é capaz para derrotar um peão que ousa
levantar a cabeça para enfrentar seus patrões. E, o que quer que tenha passado
pela vida de João depois de sua demissão por lutar, foi o que o levou a virar
um peregrino da USP, andando maltrapilho por aí. Das pessoas que conversavam
com ele, ouvi muitas coisas: que ele tinha momentos de lucidez, em que contava
as histórias de sua luta, e outros de embriaguez - é muito provável que tenha
se tornado alcóolatra. Sobre esses outros momentos, há histórias nada bonitas
de João: que assediava as meninas, que ameaçava.
Dou
crédito a essas histórias porque as ouvi de muitas pessoas, inclusive pessoas
em que confio. Mas não atribuo apenas a essas histórias o "mérito"
por ter ouvido comentários como esse sobre a morte de João: "Sinceramente?
Ainda bem que morreu. Foi tarde. Só metia medo nas pessoas. Não sei como
permitiam uma pessoa dessas ficar solta pela USP e colocar medo nas
estudantes."
Os
comentários como esse devem ser feitos às dezenas nas conversas da USP. Quando
não são públicas, como no caso acima, devem ser ainda piores. Não defendo em
nenhuma instância a atitude de João de assediar as meninas, independente da
forma como o fizesse. É uma dessas monstruosidades que ocorrem mil vezes por
segundo em nosso mundo, um testemunho inequívoco da podridão de nossa
sociedade. Isso, no entanto, está muito longe de ser tudo o que João era ou fez.
A mesma sociedade que o ensinou a assediar as mulheres foi a que lhe tomou seu
trabalho, seu sustento, lhe impôs uma vida de andarilho e alcoolatra. Sobre
isso, essas vozes "revoltadas" calam. A mesma sociedade que ensinou
João a assediar as mulheres é a que ensina cada estudante endinheirado da USP a
fazer a mesma coisa; mas eles não são barbudos maltrapilhos que não tomam
banho: são garotos perfumados, com roupas caras, malhados da academia, que o
fazem em festas open bar promovidas pelas suas atléticas, onde eles se
embebedam sem o olhar condenador de sua
sociedade, e onde podem tratar as mulheres como objetos sexuais sob a
conivência de todos, inclusive de grande parte dos que se revoltavam com a
forma como João assustava as estudantes.
Quando
João deu o melhor de si para o mundo, que foi colocar em jogo o seu ganha-pão
para defender uma escola digna para os filhos dos trabalhadores, ele foi punido
com todo o "rigor da lei". Quando ele passou a ser um
"vagabundo" andando pela USP, nenhuma instituição dessa sociedade se
preocupou com isso. Quando ele morreu, largado, possivelmente de frio, no mesmo
lugar em que estuda a elite desse país, que vai ali se formar para garantir a
continuidade desse mundo tal como ele é, e de tudo o que fizeram com João durante
sua vida, nesse momento muita gente lembra que João existiu. Não do que ele fez
para transformar esse mundo; lembram-se da sua aparência assustadora. Comemoram
sua morte. E, amanhã, já terão esquecido dele para sempre, embriagando-se com
as possibilidades que a vida lhes oferece. As possibilidades que foram
arrancadas brutalmente de João e de tantos bilhões de outros todos os dias.
Por todos
esses, seguimos lutando. Para que ninguém mais morra, após ser derrotado em uma
luta pelo mundo, largado no relento, tratado como alguém que não merece o
melhor que a humanidade é capaz de criar. A greve da USP e tantas outras lutas
que travamos, sem desistir, é por isso. E, se amanhã, algum lutador entre nós
tiver o mesmo destino que João, que continuemos lutando, incansavelmente, para
que isso nunca mais aconteça, e que às mortes de todos esses seja feita
justiça.
[1] Texto publicado dia 04/09/2014 em Entropia Dialética - A morte de mais um joão-ninguém
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